Antes de ler o texto veja o que a autora tem a dizer e depois continue lendo!
Eu juro que não sei como diabos fui parar nesse assunto. Não me lembro se estava pesquisando sobre quadrinhos ou se estava pesquisando sobre BDSM, mas certamente não era os dois juntos. Só sei que de um dia para o outro a informação estava aqui na minha cabeça: a Mulher Maravilha é um símbolo do BDSM.
Mas entenda, não só um símbolo adotado. Não foi alguém que simplesmente associou o Laço da Verdade com o Shibari e pronto, vamos usar a personagem como símbolo. Não é um caso de predileção ou adoração, e tampouco um caso de ficção de fã.
Professor Marston e suas Mulheres-Maravilha
William Moulton Marston, o criador da personagem, além de ser fetichista praticante, era bígamo e inspirou Diana em suas duas mulheres.
É, você não leu errado, é isso mesmo. E eu sequer tenho como falar de um jeito menos direto. A informação por si só já é curiosa, destrinchar ela é ainda mais curioso.
Eu já sabia sobre a criação da personagem em cima de conceitos de dominação e submissão, quando um dia, sentada no sofá com a minha mãe e zapeando a TV sem interesse em nada específico, paramos para assistir a um filme chamado Professor Marston e as Mulheres Maravilhas. O título me deixou super curiosa e felizmente também à minha mãe, então paramos para assistir.
No filme encontramos Luke Evans no papel de William Marston, professor de psicologia na Harvard Radcliffe College. Rebecca Hall no papel de Elizabeth Marston, esposa de William e também professora, em busca da validação de Harvard em seu diploma, e Bella Heathcote no papel de Olive Byrne, uma das alunas da classe de William, pelo qual ambos os professores se apaixonam.
Enredo
A história começa com crianças e adultos colocando fogo em quadrinhos da Mulher Maravilha, o que para mim foi uma surpresa, não sabia desse boicote após o nascimento da personagem. Então percebi que era mais um daqueles filmes onde o passado se entrelaça com cenas do futuro, mostrando o clímax antes dos acontecimentos que o desencadearam.
Desde o início é possível ver o que William pensa sobre as mulheres e a independência. Principalmente porque, em 1928, o feminismo nos Estados Unidos estava em seu auge e sua própria mulher era progressista. Elizabeth não só trabalhava fora, como era acadêmica e podemos ver no filme que era muito segura de si, diferente de como as mulheres eram ensinadas a ser naquela época.
Somos levados, então a uma já clichê história de amor: o casal que se conhece desde criança, cresceram juntos, se apoiam em tudo o que fazem. Tive a certeza de que a história de amor não permaneceria clichê quando coloquei os olhos em Olive Byrne.
Cientistas, fetichistas e poligâmicos
Ah, antes de prosseguirmos, há uma coisa que você precisa saber sobre William e Elizabeth Marston: eles foram os criadores do Teste de Pressão Arterial Sistólica. Digo “eles” e não só “William” porque no filme e em toda biografia escrita até hoje está claro como ambos trabalhavam juntos. E é lógico que ninguém atribuiria uma grande descoberta, naquela época, a uma mulher. Na minha cabeça os dois estavam estudando e criando, exatamente como no filme. Não sabe o que é Teste de Pressão Arterial Sistólica? É o teste cardíaco usado no detector de mentiras, onde a pressão pode ou não mudar quando a pessoa é confrontada e obrigada a mentir.
Ou você achou que o Laço da Verdade da Mulher Maravilha veio do nada? Nah, bobinho.
Quando Olive passa a ser assistente de William e Elizabeth, ambos começam aos poucos a se interessar pela aluna. Isso fica bem claro depois de assistirem Olive em uma cena de spanking realizada dentro da universidade, em sua irmandade, como uma simples brincadeira. Ao confrontarem Olive sobre o que ela sentiu, Elizabeth nota que a voz da jovem muda e que ela fica ofegante, percebendo então que a chave para o detector de mentiras funcionar é a pressão arterial sistólica. É uma cena muito interessante, porque além de envolver toda a ciência por trás do detector de mentiras, também inicia o romance dos três.
Agora, pare para pensar comigo: o poliamor hoje em dia é super criticado. Fora os memes e a internet como um todo, ter uma relação poliamorosa é complicado em termos de cidadania e comodidade. Se em 2019 um casal de mais de duas pessoas não conseguem direitos mínimos para seus parceiros ou algum respeito, imagine em 1928.
Mulheres Maravilhas
Olive Byrne era filha de Ethel Byrne e sobrinha de Margaret Sanger, duas ativistas pelos direitos das mulheres que foram muito conhecidas, e isso também influenciou tanto a cabeça de Olive quanto a criação de Diana. Sendo Elizabeth Marston também uma mulher progressista, as diversas discussões feministas da época batiam diretamente com a vida do casal.
Depois de muita autoaceitação e discussões, William, Elizabeth e Olive passaram a viver juntos sob o mesmo teto, com a desculpa de que Olive era a criada dos Marston. William teve dois filhos com cada uma de suas mulheres. O que de certa forma pode parecer um mero ménage à trois, pode ser desmentido facilmente. Elas não só o amavam, como também se amavam. E após a morte de William Marston em 1947, Elizabeth Marston e Olive Byrne viveram juntas até a morte de Olive. Elizabeth viveu até os 100 anos, morrendo em 1993. Na foto ao lado, as duas, bem velhinhas. (Estou tentando escrever este texto de um jeito formal, mas: QUE FOFURINHA!)
A origem da história da Mulher Maravilha
A história da Mulher Maravilha não vem de um simples quadrinho, vem de uma conturbada história de amor.
Em “Professor Marston e as Mulheres Maravilhas” é possível ver a tensão sexual, o desejo e – palavras do filme – perversão em que William estava inserido. Como psicólogo, ele é pai da Teoria DISC, que por cima pode explicar Dominação, Influência, Estabilidade (que, em inglês, é Submissão mesmo) e Conformidade. A todo momento William testa sua teoria em Olive e nas demais alunas de sua classe, explicando como a relação de influência é diferente da relação de submissão e conformidade. Posteriormente ele escreveu o livro “As Emoções das Pessoas Normais”, que foi publicado pela primeira vez em português no ano de 2014. Não preciso dizer que partes importantes de sua teoria foram diretamente inseridas na criação da Mulher Maravilha. E também é incrível como a Teoria DISC pode ser associada com a tríade SSC do BDSM, mas talvez isso seja pauta para outro artigo.
Diana, a Mulher Maravilha, residente da Ilha Paraíso, amazona, super forte, invencível, nasceu em 1940-1941. Diz-se ainda que a ideia de criar uma super-heroína mulher – afinal, aquela era a época onde o Super Homem atingiu seu auge – foi de Elizabeth.
Baseados em fatos sexuais
Baseando-se em suas próprias experiências sexuais com Olive e Elizabeth, William Marston escreveu e publicou a Mulher Maravilha pela All-American Publications, que se tornaria a DC Comics após a fusão com a National Periodical Publications. Sendo William um homem devoto à sexualidade e submissão masculina, já que acreditava que mulheres podiam ser superiores aos homens e que eram melhores líderes, não foi difícil para ele conceber Diana, a mulher perfeita, a junção de suas duas mulheres. A Mulher Maravilha.
Em suas publicações iniciais era possível ver uma enorme quantidade de Bondage, o uso de cordas e nenhuma necessidade de esconder o erotismo. A dominância das amazonas da Ilha Paraíso também ficava em evidência sempre que possível. Em “Professor Marston e as Mulheres Maravilhas”, dá a entender que Elizabeth era uma figura mais dominante sexualmente, em que William e Olive Byrne ficavam em papéis mais submissos ou mesmo intercalados. A presença de spanking nos quadrinhos também era frequente.
Acessórios fetichistas
Até mesmo as roupas que Diana usava vinham do submundo fetichista. No filme há uma linda cena em que todos estão em um encontro fetichista e Olive se veste com corselet e acessórios e usa uma corda. É a cena que deu capa ao filme, inclusive, e as referências para a Mulher Maravilha que conhecemos hoje são incontáveis.
Há ainda a presença dos braceletes de Diana, que desviam balas. William Marston os criou porque Olive sempre usava duas pulseiras, uma em cada braço. É possível ver essa pequena referência em praticamente todas as cenas do filme onde Olive aparece.
Além de, claro, o Laço da Verdade, uma óbvia referência ao Detector de Mentiras de Marston, além de amarração erótica. As amarrações aparecem nos quadrinhos não apenas com as cordas, mas com correntes, laços e fitas.
A personalidade da Mulher Maravilha
A personalidade de Diana foi inteiramente inspirada nas situações vividas no cotidiano dos Marston, ou seja… sabe aquela história de que a Mulher Maravilha “poderia ser” bissexual? Não é história, afinal. Os primeiros quadrinhos deixavam claras as intenções de Diana com outras mulheres, assim como deixavam claras suas intenções com os homens. Abriam, assim, a discussão do lesbianismo (já que o termo “bissexual” surgiria muitos, muitos anos depois), que na época ainda era considerado perversão e crime. William foi abertamente criticado, é claro, mas a realidade estava ali, uma vez que Elizabeth e Olive se relacionavam entre si tanto quanto se relacionavam com ele.
Há um livro recentemente traduzido para o português, chamado “A História Secreta da Mulher Maravilha“, que é um compilado de notícias, ilustrações, matérias antigas e biografia. Ele foi escrito por Jill Lepore e é uma das principais fontes para qualquer um se embasar no assunto, já que Jill foi a fundo na relação de William com suas mulheres, com o fetichismo e com o feminismo estadunidense de sua época. O livro também foi instrumento base para a construção do roteiro de “Professor Marston e as Mulheres Maravilhas“.
Identidade Secreta e a Mulher Maravilha
É interessante ressaltar também que William publicou a Mulher Maravilha sob o pseudônimo de Charles Moulton. Pesquisando sobre possíveis motivos, só consegui chegar à mesma conclusão do filme: todo mundo, em algum momento, precisa de uma identidade secreta.
Depois da morte de William Marston em 1947, os quadrinhos de Diana foram repaginados, mas a história já estava lá. A bela amazona, independente e superior aos homens, que vivia em uma ilha paradisíaca com diversas outras mulheres amazonas tão superiores aos homens quanto ela. E um dia um soldado irrompe as barragens, trazendo Diana para “o mundo dos homens”. Não são palavras minhas.
A Mulher Maravilha voltou a ser um ícone feminista em diversas épocas, sendo elas os anos 70 e hoje em dia, com o lançamento de Gal Gadot pelo DC Cinematic Universe. Ela foi adotada por movimentos que inclusive repudiam as práticas fetichistas no qual foi embasada, o que para mim é bem irônico e quase divertido.
Mas agora você já sabe da verdade, né? A Mulher Maravilha não só é um símbolo do BDSM, como nasceu de uma relação poliamorosa de fetichistas feministas. Que título!
Este artigo não necessariamente representa a opinião da Xplastic.