Eu estava despretensiosamente rolando o feed do Instagram quando me deparei com a impressionante imagem de um homem deitado coberto por uma veste de Superman completamente feita de um material parecido com parafina derretida. Demorei para entender que era isso mesmo: gota por gota, o corpo de um submisso foi preenchido como uma tela em branco, até ganhar uma pintura em cores super vivas. A arte com cera de vela é uma das modalidades do wax play, uma prática de BDSM, e pode ser traduzido por algo como “brincadeira com cera”. Até então eu só conhecia as brincadeiras fetichistas mais básicas do wax, que envolvem deixar a cera pingar e escorrer pelo corpo. 

Em busca de saber mais sobre a arte com cera de vela, fui stalkear o perfil da Rainha Regys, a dominadora por trás de algumas das imagens que estão ao longo da matéria. Nesse trajeto, encontrei um ensaio fotográfico que a tatuadora Bruna Safeco realizou com a fotógrafa Ana Di Castro usando técnicas de wax play. Eu conversei com a Bruna para entender um pouco mais sobre seu processo artístico. 

Também bati um papo com a Vivi Escarlate, a artesã que fabrica velas específicas para realizar sessões de wax play artístico.

A senhora das velas

arte com cera de vela caverna do dragao
Algumas das obras com cera de vela da Rainha Regys

Rainha Regys é uma experiente dominadora versada em práticas diversas do BDSM, como shibari, needle play e até tortura genital. Em uma década de prática, já dominou diversos homens e mulheres. No entanto, sua trajetória nos fetiches não começou de uma forma muito tranquila:

A partir da maturidade sexual, comecei a ter desejos ‘estranhos’. Depois de idas ao psicólogo, descobri que o que eu sentia era sadismo erótico. Desde então procurei saber mais sobre. Faz dez anos que sou praticante de BDSM e sigo todas as regras de segurança do jogo. 

RAINHA REGYS

A arte com cera de vela, assim como as imobilizações mais básicas e os chicotes tipo floggers, por não serem práticas dentre as mais dolorosas, costumam ser utilizadas por muita gente fora do BDSM. Para Regys, as velas também foram uma espécie de “porta de entrada”:

As velas foram uma das primeiras práticas que fiz ainda no ‘baunilha’, mas depois de entrar para a comunidade vi que as velas tinham muito mais a oferecer. Fui pesquisar desde a composição das velas que uso até procurar dominadores mais antigos para me explicar técnicas de uso e segurança.

RAINHA REGYS

Processo de criação

O caminho que Regys percorreu para descobrir formas de saciar o prazer por provocar dor sempre foi permeado pelo conhecimento técnico, essencial para a prática de fetiches e ferramenta da qual ela não abre mão:

De início, as cores me chamaram muito a atenção, pensei como posso brincar com elas? Depois de pesquisar um fornecedor de velas que atendia esse desejo, os desenhos foram surgindo… Tímidos, desajeitados, mas com a técnica certa que um amigo me passou, consegui dar formas às gotas e dar vida aos desenhos. Para cada desenho, uso umas cinco técnicas diferentes para sincronizar cores e as gotas de cera.

RAINHA REGYS

Inspiração para as obras

Dentre as técnicas que Regys aceitou revelar estão a aplicação tradicional, de pingar a cera, a condução da cera com faca e “cera sobre cera”. Mas de onde surgem as ideias de obras como a veste de Superman, um risonho Coringa ou uma coruja? Regys explica que a criação da arte com cera de vela durante as sessões, que já chegaram a durar 2h30, é conjunta:

Minha inspiração vem do submisso que vai receber o wax. Personalidade, corpo, gênero sexual. Tudo isso faz que apareça um desenho novo. Tendo isso, faço uma busca da imagem que desejo e uso como referência. É um misto de muitas sensações, começa com o olhar para a ‘tela’ em branco e imaginar onde cada gota vai cair e se transformar. Ver a sensação do submisso imóvel por horas e transformá-lo num real objeto. O toque na pele dá um tom especial e erótico a tudo! E remover é sem dúvida tão prazeroso quanto fazer.

RAINHA REGYS

A cera de vela, quando aplicada de maneira uniforme em áreas extensas, vai formando grandes placas, é a elas que Regys se refere sobre ao prazer de retirar. É comum que os adeptos utilizem espátulas, facas ou punhais com ou sem corte para retirar a cera do corpo, o que é mais uma possibilidade de subir um degrau na dominação exercida sobre o bottom. 

Eu brinco que o aftercare é remoção da cera, eu uso uma faca afiada. O frio da lâmina com o toque das minhas mãos fazem o ‘carinho’ que o submisso precisa.

RAINHA REGYS

Uma chama no buraco negro

arte com cera de vela buraco negro Bruna Safeco
Uma das fotos do ensaio com cera de vela de Bruna Safeco

Bruna Safeco é a mulher por trás de impressionantes retratos artísticos com cera de vela sobre o rosto, ombro, colo e mãos. Junto com a fotógrafa Ana Di Castro, Bruna deu vida a um desenho que fez inspirado na foto de um buraco negro:

Assim que lançaram a foto de um buraco negro, eu pensei ‘nossa, um personagem disso ia ficar incrível’. Eu estava bem deprimida nessa época, então eu fiz o meu próprio buraco negro, tentando mostrar como eu me sentia nesses momentos.

BRUNA SAFECO

Ela pratica BDSM há cerca de sete anos e conhece a fundo o uso de velas. A aplicação no rosto para o ensaio foi feita de forma a deixar a cera bem distante dos olhos, sempre mantidos fechados e protegidos com as mãos. Já o restante da cor preta, mais perto do olho, foi feito com edição de imagem. O resultado é encantador e instigante.

Casa de ferreiro, velas de parafina

Vivi Escarlate é um nome promissor na fabricação e venda de insumos para adeptos da arte com cera de vela. Ela produz as velas queridinhas da Rainha Regys e também as que foram usadas no ensaio de Bruna Safeco. Seus produtos prometem atingir uma temperatura segura para aplicar sobre a pele, mas ainda assim se manterem interessantes para o BDSM. Além das cores vivas, que não desbotam ao serem aplicadas.

Ela resolveu que se mudar de Maceió para São Paulo em busca de viver mais intensamente o estilo de vida fetichista. Atualmente, Vivi tem um relacionamento totalmente baseado no BDSM, no qual ela pertence ao mesmo Dominador há quase quatro anos e afirma ter se encontrado “como mulher e como pessoa”. Profundo, né?

Minha trajetória no meio BDSM começou com a curiosidade sexual e os desejos não compreendidos pelos meninos da minha idade na minha terra, me descobri sadomasoquista aos 21 anos de idade, gostava de torturas nos seios, algumas humilhações, mas algo no campo moderado. A existência do BDSM eu descobri em junho de 2011 com um namorado que morou um tempo aqui em São Paulo, a forma que eu gostava de ter relações sexuais chamou a atenção dele. Ele me perguntou se eu conhecia o BDSM, na hora eu não consegui pronunciar nem o nome da sigla, mas comecei a pesquisar e me encantei.

VIVI ESCARLATE

Bons materiais para arte com cera de vela

velas da Vivi Escarlate
Algumas das opções de cores das velas de Vivi Escarlate

Mas vamos à vaca fria: afinal, como Vivi chegou na fórmula perfeita para produzir velas populares no meio de wax play artístico? O controle de qualidade, Vivi, que é submissa e alérgica, garante testando na própria pele. Aliás, eu descobri que esse processo é bem mais complexo do que eu imaginava:

Acredito que cada artesão tenha sua técnica, eu sempre estou em contato com artesãos de velas decorativas para saber qual o melhor material do mercado, qual a temperatura legal para evitar reações alérgicas e chegar em uma temperatura agradável. Existe uma pequena diferença entre as velas comuns e as de wax, do tipo da coloração, das parafinas usadas para que o ponto de fusão seja baixo, pois se for igual às velas comuns causa queimaduras.

VIVI ESCARLATE

Vivi usa parafina, manteiga vegetal e extrato de óleos vegetais nas suas velas. Ela conta que está sempre fazendo testes para aprimorar a qualidade e criar novas cores. Um cuidado: velas com glitter são especialmente perigosas, Vivi chegou a testar, mas não foi adiante com a ideia porque as partículas causaram queimaduras.

Ou seja, nada de comprar velas em lojas comuns e sair usando na pele. O ideal é procurar fabricantes especializados em velas para BDSM ou, em última hipótese, velas para massagem ou velas de sex shop, que não esquentam muito por conter mais emolientes na composição. 

Cuidados com o wax play

O wax play pode ser feito de diversas formas; algumas delas são praticamente indolores, mas tudo depende do ponto de fusão da vela utilizada, da distância de gotejamento em relação à pele e da combinação de outras práticas, como spanking, antes ou depois da sessão. Quem recebe a cera quente pode sentir desde um calorzinho na região aplicada até uma leve queimadura. 

Vale lembrar que assim como expliquei nas reportagens sobre fireplay e pirossexualidade, é importante que queimaduras reais estejam fora de cogitação, porque a situação pode fugir facilmente do controle, causando febre e lesões na pele.

Checklist para praticar wax play

wax play Bruna Safeco
Mais uma do ensaio da Bruna Safeco

Em uma live no Instagram, Rainha Regys e Vivi Escarlate deram várias dicas de segurança, algumas delas reproduzo aqui:

  • Primeiramente, uma boa preparação de wax play envolve pingar a cera cerca de 25 a 30 minutos antes da sessão na mão ou parte interna do braço, que são locais mais sensíveis, e observar se há reação adversa;
  • Ao preparar a sessão, é importante não deixar cabelos soltos no caminho das chamas, colocar as velas em locais estáveis e longe de objetos inflamáveis. Além de limpar a pele para evitar que hidratantes e outros produtos reajam com a cera;
  • Uma boa distância para aplicar a cera é de 1,5 m, mas ela pode ser e regulada de acordo com a preferência do bottom;
  • Aliás, cuidado ao praticar spanking ou outros fetiches que envolvem dor antes da sessão de wax, isso pode deixar o bottom mais sensível;
  • Não pingar em mucosas, por exemplo dentro da vagina e da boca;
  • Geralmente velas de cores mais escuras são mais quentes do que velas de cores claras;
  • Após a sessão, pode ser uma boa ideia tomar banho para ajudar a acalmar a região que recebeu a cera;
  • Queimaduras podem ser causadas se o pavio ou a base de metal da vela caírem na pele. Se ocorrer, deve-se retirar o mais rápido possível e lavar a pele com água fria. Em caso de bolhas, procurar um médico.

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