O casal fazia sexo, de forma apressada, na sala da residência. Ambos usavam máscaras que escondiam totalmente os rostos.

Ela estava por cima: com a mão esquerda, acariciava os seios; e com a direita, agarrava o próprio cabelo, loiro, no alto da cabeça, fazendo um coque suado e desarrumado.

Enquanto isso, ele, sentado no sofá, se limitava a segurar a cintura da parceira, não se furtando de arranhar toda a extensão das costas, deixando marcas vermelhas, as quais ela adorava. Tudo acontecia naturalmente, como de costume. Até que o prazer foi interrompido pelo som de passos, oriundos da garagem da casa. Em seguida, a porta da sala se abriu, rangendo. Mas, não havia ninguém.

– Nossa, que estranho! Nem está ventando e a porta abriu sozinha! – Disse a mulher mascarada, com a voz abafada.

– Meu Deus! Quase tive um infarto! Achei que fosse sua mãe! – Falou o homem, ofegante, ainda sentado no sofá.

Ela se levantou e caminhou nua, rebolando, até a porta, fechando-a com uma batida seca e mal educada. Aparentemente, não havia nenhuma pessoa lá fora.

******

Bárbara dirigia em alta velocidade, conduzindo o veículo, um Logan preto, motor 1.0, pela faixa da esquerda. A madrugada já estava no fim, e a ausência da cor laranja do sol nascente revelava que a neblina iria dominar a manhã. Dos olhos verdes, lágrimas geladas, de culpa e sofrimento, escorriam como gotículas de orvalho. Sabia que o casamento de seus pais estava em ruinas, e que cedo ou tarde a separação iria acontecer. Mas não esperava que fosse de maneira tão trágica. Tão fria e, ao mesmo tempo, brutal.

Desde o dia em que descobriu a possibilidade do divórcio, lutou para que isso não acontecesse e para que permanecessem juntos. Mas a batalha mostrava sinais de que já estava perdida há muito tempo.

Sentia o coração doendo quando se lembrava da mãe, maquiando- se de forma impotente e ineficaz, no banheiro, tentando se sentir Sexy novamente, como ela mesma dizia. Além disso, a imagem das diversas vezes em que vira o pai se masturbando, no silêncio da madrugada, na sala da casa, assistindo filmes pornográficos no computador da família, ficara impregnada no consciente, como um mau hábito que nunca irá se desvencilhar.

Dessa forma, estando no meio da situação, sentia-se culpada por não poder mudar o curso daquelas águas, que certamente iriam conduzir a família à ruina. Mas agora, já era tarde. Nada poderia ser feito.

Uma placa sinalizava que o pedágio de Itupeva Norte estava a cerca de um quilometro. Logo, desacelerou o veículo e enxugou as lágrimas e o catarro na borda da camisa velha, que havia colocado sem escolher, no inicio daquela madrugada. Olhou no relógio digital no painel e constatou que faltavam quinze minutos para as seis horas da manhã.

Era um domingo, dia vinte e nove de dezembro do ano de 2013, e ela estava indo para Ribeirão Preto, para se encontrar com o pai, na casa dos Avós.

“Um olhar penetrante e um par de pernas torneadas: uma faca afiada”

A cerração pairava no asfalto da Rodovia como uma nuvem de poeira branca, estática. Apesar do horário, o sol teimava em penetrar totalmente as nuvens e não era possível enxergar, com precisão, mais do que setecentos metros à frente, mesmo usando os faróis altos.

Quando abriu as janelas automáticas do veículo, Barbara foi presenteada com o aroma de terra úmida e fria. “Esse ar tem cheiro de suco de caju” – foi o que pensou. Três carros estavam à frente, formando uma fila antes da catraca do pedágio.

Então, precisou encostou o cotovelo na janela, colocou a mão sobre a testa e fechou as pálpebras por alguns segundos. A lembrança da separação dos pais a assombrava e incomodava como uma afta exposta à comida salgada. Consequentemente, controlou-se para não começar a chorar.

Checou o retrovisor e verificou que os olhos estavam vermelhos e inchados, pelo fato de não ter dormido na noite anterior. Vestia calça jeans azul. A camisa velha, de mangas curtas, tinha uma coloração amarelada. Sobre o banco do passageiro estava um par de All Star. Barbara havia contraído, contra o gosto do pai, o hábito de dirigir com os pés descalços. “Não se preocupe. Meus pés não suam!” – era o que costumava argumentar.

pedalpump

Quando os três veículos passaram, a jovem imediatamente efetuou o pagamento da taxa do pedágio. Enquanto aguardava a liberação, passou a mão nos cabelos loiros, segurou as pontas e as levou na direção do nariz arrebitado. Sentiu o cheiro suave de Shampoo L’oreal Paris e, nesse mesmo momento, verificou que logo à frente um Policial Militar, devidamente fardado, estava de pé, observando-a fixamente nos olhos.

Um pouco sem graça, em decorrência do olhar penetrante daquele homem, jogou as pontas dos cabelos para trás e esticou o braço esquerdo para apanhar o comprovante do pagamento.

– Obrigado e boa viagem – Disse a senhora do caixa. Rapidamente, apanhou o comprovante e acelerou cerca de quatro metros, em direção à cancela que acabara de se abrir. O Policial aproximou-se da janela do veículo, com um sorriso sem graça no rosto pálido e bem barbeado.

– Bom dia moça, tudo bem? – Disse, com uma voz de médio tom que apresentava um forte sotaque do interior Paulista.

– Bom dia – Respondeu Bárbara.

– Eu sou Militar e… estou indo para Limeira. Você vai passar por lá?

– Sim, pois vou para Ribeirão – Respondeu, com a testa franzida.

– Ótimo. Você se importaria em me dar carona até o posto de parada de Limeira? O micro ônibus da minha base vai sair de lá.

– Puta que pariu, agora eu estou fodida! – Pensou Barbara – Claro que posso, pode entrar – Foi o que ela disse.

Constrangida, retirou o par de All Star do assento do passageiro e o atirou no banco de trás. Logo depois, destravou as portas. A primeira coisa perceptível, para Barbara, foi o cheiro de sabonete e de tabaco. Não era bom, nem ruim. Apenas um forte cheiro de sabonete de banho misturado com cigarro barato, que passara a ocupar o espaço no interior do veículo.

A jovem pisou fundo no acelerador, mantendo-se na faixa da esquerda. Tensa, em razão de um Policial fardado estar ao lado, não disse nenhuma palavra, e esperou por longos dez segundos até que ele se pronunciasse.

– Muito obrigado moça. Qual o seu nome?

– Por nada. Meu nome é Barbara – respondeu, sem virar o rosto. Em seguida, para criar um clima amistoso, emendou outra:

– O seu nome, qual é mesmo?

– Pode me chamar de Hélio.

A rodovia estava calma e sem muitos veículos ou caminhões. A neblina continuava intensa e dominava o asfalto gelado. Bárbara permanecia com o rosto fixo à frente, alternando o olhar entre a pista e o velocímetro no painel. Mais do que antes, estava preocupada em manter a média de cento e dez quilômetros por hora, pois a presença do Policial a incomodava. Tanto que se arrependeu de não ter dito que iria parar antes de Limeira, para não precisar fazer aquele favor.

Enquanto isso, Hélio demonstrava interesse em conversar.

– Você não acha perigoso? Viajar no inicio da manhã? Pois o nevoeiro é sempre forte nesse horário!

– Sim, mas eu acho mais perigoso pegar a estrada de madrugada, onde é difícil enxergar, mesmo usando o farol alto.

– Entendi. Você viaja sempre?

Antes de responder, Bárbara respirou fundo. Desde o momento em que o Policial entrou no veículo ela não havia olhado na face dele. Mas, enquanto dirigia e conversava, percebeu por meio da visão periférica que Hélio estava com a cabeça virada na direção dela, observando-a o tempo todo, e não olhando para a rodovia à frente, ou para a janela direita do veículo.

– Olha pra frente seu filho da puta… Pare de olhar pra mim! – Pensou, segundos antes de responder à última pergunta.

– Na verdade, essa é a segunda vez que eu pego essa rodovia. Eu tenho vinte e cinco anos, tirei a carta com 18. Há cinco meses eu fiz esse mesmo caminho com meu pai e com minha mãe, pois estávamos indo visitar a minha avó, e lembro que eles me deixaram dirigir, pois se trata de uma pista muito boa e segura.

– Sim é verdade. Eu também adoro dirigir aqui. Onde estão seus pais?– Questionou Hélio, ainda sem desviar o olhar da jovem. Barbara rangeu os dentes. Os molares se contraíram com tamanha força que poderiam facilmente triturar qualquer objeto que estivesse entre eles. Quem aquele homem pensava que era, para perguntar detalhes daquele jeito? Por que ele não se limitava a ficar quieto e esperar, em silêncio, o posto de Limeira chegar? Essas questões martelavam a cabeça dela e, para não estimular maiores questionamentos, resolveu responder de forma fria.

– Estão lá, me esperando!

O Policial ficou em silêncio, mas sem virar a cabeça ou desviar o olhar. As mãos de Barbara apertavam com força a borracha já carcomida do volante. O pé descalço que, costumeiramente, não ficava suado sobre o pedal do acelerador, começou a dar sinais de umidade.

A rodovia estava vazia, silenciosa e, em razão do volume da neblina ter aumentado, não era possível enxergar muito além. Logo, precisou diminuir a velocidade para noventa quilômetros por hora e se direcionar até à faixa do meio. Nesse momento, finalmente, Hélio virou a cabeça e também passou a observar a rodovia à frente.

“O sofrimento no inferno é eterno, e as pessoas passam o tempo assistindo os pecados que cometeram quando eram vivas”

Aquilo, o desvio de foco do Policial, fez Bárbara ficar relaxada. Mas não durou muito, pois logo em seguida, o homem levantou o braço esquerdo e começou a coçar a cabeça, de forma frenética. Até então, um gesto normal e típico. Porém, o som alto e desproporcional que as unhas produziam, ao serem raspadas nos cabelos e no couro cabeludo, causou aflição e irritação na Jovem. Parecia que estava machucando, cortando, raspando a carne da cabeça. “Meu Deus! As unhas dele devem estar grandes!” – Pensou Bárbara, engolindo em logo em seguida.

O Policial parou de se coçar e repousou a mão no colo. Nesse momento, Bárbara teve uma breve impressão que a deixou aterrorizada: aparentemente, as unhas dele eram enormes e escuras, como se fossem garras de um animal selvagem.

“Caralho! Que porra é essa!” – Pensou, desejando poder virar o rosto discretamente e poder constatar se sua impressão era real ou não. Hélio continuou mergulhado em seu repentino silêncio. Não se mexia e permanecia sem dizer uma palavra. Até que virou o rosto na direção da janela à direita do veículo e fez um comentário vazio e superficial sobre as gigantescas plantações de cana de açúcar que haviam naquele lugar da estrada. Aproveitando esse momento, Bárbara virou o rosto e conseguiu, para a sua infelicidade, comprovar que a impressão de outrora era verdadeira. Aliás, a realidade diante de seus olhos mostrou-se ainda mais chocante: as unhas do Policial eram muito grandes, quase do mesmo tamanho dos dedos; eram escuras; curvadas; e pontudas. Naquele momento, o pé de Barbara começou a suar como nunca.

A rodovia, cercada por aquelas vastas plantações de cana e propriedades rurais, estava praticamente deserta. O sol já havia nascido por completo, mas estava escondido atrás das nuvens com cor de mercúrio, que dominavam o céu. Aparentemente, a neblina não iria se dispersar tão cedo e, a cada quilômetro percorrido, a sensação era a de estar entrando em uma imensa bola de algodão encardido, que cobria e sufocava a paisagem daquela manhã de domingo.

De repente, Hélio quebrou o silêncio com uma pergunta estranha:

– Estou com fome. Por acaso você tem alguma coisa para eu comer?

A moça não entendeu a pergunta. Na verdade, escutou nitidamente, mas seu cérebro, não acostumado com esse tipo de abordagem, obrigou-a a solicitar a repetição daquela indagação.

– Desculpe, eu não entendi.

– Quero comer alguma coisa! Você tem algo para me dar?

Realmente o policial desconhecido, que estava de carona, e que portava as longas unhas escuras, com o mesmo aspecto de garras de um Urso Grizzly, havia pedido comida. Esse é o tipo de indagação que ninguém espera escutar de um desconhecido, ainda mais naquela circunstância. Instintivamente, a mente feminina de Bárbara começou a temer a possibilidade de abuso sexual e estupro, tanto que, como um “flash”, imaginou-se numa delegacia fazendo um boletim de ocorrência, portando uma mancha enorme de sangue sobre a calça jeans, na região da bunda.

O temor aumentava.

Além disso, as mãos, e também os pés descalços, já estavam perigosamente molhados de suor.

– Me desculpe, mas não tenho nada aqui no carro comigo – Respondeu, sem jeito e com um sorriso sem graça.

O Policial gargalhou e contra argumentou.

– Você está mentindo para mim! Estou sentindo cheiro de comida! Como se estivesse possuído por uma liberdade, que não lhe fora concedida, Hélio meteu a mão no botão do porta luvas, e o abriu. Lá de dentro, retirou o que parecia ser uma maçã e uma banana, ambas enroladas em papel alumínio.

– Aqui, não falei que você tinha comida!

– Na verdade, isso está ai dentro desde a semana passada, e eu me esqueci de jogar fora. Deve estar podre, não coma!

Os lábios – carnudos – de Barbara tremiam.

Estava com muito medo, pois aquela situação totalmente sem lógica a assustava. Afinal de contas, quais poderiam ser as próximas reações daquele Policial e seus hábitos estranhos? Questionando esses fatos consigo mesma, enquanto, também, iniciava um processo de planejamento do que deveria ser feito a partir daquele momento, a jovem percebeu quando Hélio, simplesmente, começou a devorar as frutas sem ao menos retirar o papel alumínio, ou tampouco descascar a banana. Um cheiro forte de fruta velha espalhou-se no interior do veículo.

– Que delicia!

“Às vezes, a melhor opção é não saber a verdade”

As condições de trafego pioravam. A neblina, leitosa, ficava mais densa a cada quilômetro percorrido. Não era possível ver a presença de outros carros pelo retrovisor, muito menos à frente do veículo. Era como se estivesse dirigindo em uma rodovia abandonada e silenciosa. Em seguida, a jovem percebeu que, logo à frente, uma placa sinalizadora finalmente aparecera.

“Caralho, não aguento mais! Tomara que essa placa indique que falta pouco para chegar em Limeira” – pensou, aflita e tremula. Nesse momento, Hélio esticou o braço e apanhou o comprovante do pedágio, que estava no console do veículo, o som das unhas arranhando o plástico. Quando encarou o verso do pedaço de papel, começou a gargalhar. ‘

– O que foi? – Indagou Bárbara.

– Não foi nada. Só estou vendo esse aviso de pessoa desaparecida, que costumam colocar nos recibos dos pedágios.

– O que tem de engraçado nisso?

– Já teve aquela sensação de Déjà vu? – Questionou Hélio, com a boca suja de fruta, novamente virando o rosto na direção da moça.

– Sim. Mas, você teve isso agora?

– Tive, ao ver a foto dessa moça desaparecida.

Os pelos do braço de Bárbara se arrepiaram, assim como acontece com um gato ao ver a aproximação do cachorro. Logo, não aguentou e soltou a pergunta que soaria um tanto estranha.

– Você a conhece?

– Sim, pois tenho quase certeza que ela já me deu carona, aqui nessa rodovia, no mesmo pedágio que você me pegou. – Respondeu o policial, voltando a gargalhar.

O medo de Bárbara chegou ao ápice. Sentiu vontade de argumentar aquela afirmação, mas o pavor era tanto que ela somente conseguia ficar em silêncio, com os olhos aflitos esperando a aproximação da placa de sinalização, cuja presença havia sido detectada em meio ao horizonte branco, segundos atrás. Mas o policial fez mais uma pergunta:

– Quer ver a foto dela?

A moça não respondeu. Permaneceu imóvel como um manequim mutilado e estocado em um galpão abandonado. Então, Hélio esticou o braço e levou o comprovante até a altura dos olhos dela, os quais se encheram de lagrimas de medo e pânico quando, ao observar o verso do comprovante, por um segundo, observou que era a sua própria imagem impressa naquele documento, com os seguintes dizeres:

“Bárbara Gonçalves Santos – Desaparecida desde 29/12/2013”.

Quando o Policial abaixou a mão, a jovem olhou novamente para fora do veículo e conseguiu ler nitidamente o que a placa sinalizadora, de cor verde e letras brancas, dizia:

“VOCÊ NÃO PASSA DE UMA VACA”.

Imediatamente, Hélio gritou. Ao virar o rosto para frente, a Jovem, ainda atordoada, viu uma Vaca atravessando a pista, caminhando da faixa do meio para a da esquerda. Entre o animal e o carro havia a distancia de mais ou menos setenta metros. Imediatamente, pisou no freio e jogou o veículo para a faixa da direita (acostamento). No entanto, a Vaca se assustou com o barulho estridente da frenagem, deu meia volta e também correu na mesma direção. Como o tempo de reação foi adequando, o veículo iria parar antes de acontecer uma colisão. Mas não parou, pois quando faltavam poucos metros para as rodas frearem totalmente, o pé descalço e suado escorregou-se do pedal de freio, impulsionando o veículo de forma violenta. O pai dela, realmente, tinha razão quando reclamava daquele hábito. O para-choque frontal do Logan atingiu as pernas da Vaca, a qual teve o corpo deslocado para a parte superior do capô. Bárbara e Hélio protegeram o rosto, como se fizessem um movimento ensaiado, quando perceberam que a montanha de carne e músculos, coberta por pele marrom e branca, iria atingir o vidro do para-brisa… E atingiu em cheio, trincando-o e o deixando com o aspecto de uma teia de aranha.

Em seguida, o carro parou e a Vaca caiu no chão.

“Se você observar a porta entreaberta, e a luz estiver acesa, será o sinal de que eu estarei te esperando

– Você está bem? – Perguntou Hélio. – Sim, apesar do susto, estou bem! – Certo. Você tem um triângulo, no porta malas? – Vá colocar. Vou ligar o rádio e pedir ajuda. Falando sério daquela forma, Hélio nem parecia ser o homem com os hábitos estranhos de minutos atrás, com unhas compridas e que comera as frutas podres ainda embaladas em papel alumínio.

Mesmo assim, um pouco tonta, Bárbara desceu do veículo, o pé descalço encostando-se ao asfalto gelado, e caminhou até a frente para contemplar o estrago.

O Policial fez o mesmo.

– Meu deus, coitada! – Exclamou a jovem, levando a mão tremula à boca. – Ela vai sobreviver? – Indagou em seguida.

– Acho que não! Deve ter quebrado pelo menos duas patas. – Respondeu o Policial. – Mas não se preocupe com isso, vamos cuidar da nossa segurança. Vá colocar o triângulo. – Completou.

O animal tremia e se debatia. Não possuía forças para levantar e, a cada investida para erguer-se, jatos de sangue eram expelidos da boca, nariz, e anus. A batida não fora tão violenta como aparentava de início, mas a vaca fora atingida de forma brutal e, certamente, sofrera hemorragias internas graves. Já o veículo, não obteve muitos danos: capô e para-choques frontais amassados; e o vidro para-brisa trincado, em toda a sua extensão.

Bárbara apanhou o triângulo e dirigiu-se para a estrada, na parte de trás de onde ocorrera o acidente. Sabia que deveria colocar o sinal em uma distância de 20 ou 30 metros do veículo. Enquanto caminhava, sentiu um cheiro ruim na neblina que pairava no ar. Não era mais o saboroso aroma de suco de caju, que sentira naquela mesma manhã. Era um odor forte de flores, o mesmo que pode ser sentido nas salas onde pessoas mortas são veladas, antes de serem enterradas nos cemitérios.

O calafrio logo percorreu sua espinha, pois se lembrou do dia em que fora ao enterro de um de seus tios por parte de pai. Na ocasião, ela não visitou a sala do caixão, por medo do cadáver, mas quando entrou em casa, já durante a noite, sentiu o mesmo cheiro de velas e flores em seu quarto.

Talvez por ter ficado impregnado na roupa… talvez.

Chegando ao ponto adequando para colocar o objeto – o cheiro de rosas e flores aumentando – achou estranho o fato de não haver carros e caminhões passando na rodovia. Nesse momento, lembrou- se da placa sinalizadora, que vira segundos antes de ocorrer o acidente, e ficou pensando em seu misterioso conteúdo: “VOCÊ NÃO PASSA DE UMA VACA”. “Será que estou louca? Estava escrito aquilo mesmo?” – pensou, consigo mesma.

Balançou a cabeça, posicionou o triângulo e, no momento em que retornava ao local do acidente, repugnando o fato de ter que falar com o Policial novamente, observou um objeto escuro, oriundo da frente do veículo batido.

– Que porra é essa? – Exclamou, com voz alta. Acelerou os passos, com os pés pelados, pisando em pequenas pedras, mantendo o olhar fixo na viagem que o objeto que acabara de ser arremessado fazia. Logo, o estranho corpo, com uma forma semelhante à uma bola de futebol, fez uma curva no céu e, obedecendo a lei da gravidade, iniciou a queda, de forma veloz. À medida que “aquilo” descia, Bárbara pode perceber o surgimento de melhores detalhes, os quais permitiram a conclusão sobre o que se tratava. Mas, a constatação só veio quando o misterioso item finalmente atingiu o chão, quicando: era a cabeça da vaca atropelada.

– Puta que pariu! Vai se foder! – Gritou Bárbara, levando as duas mãos à testa, quando viu que o objeto arremessado violentamente, tratava-se, na verdade, da cabeça do animal recém-atropelado.

Aproximou-se de forma discreta, contendo a ânsia de vômito que, somada à recente visão do Policial, já era difícil de ser contida. Chegando perto, pode analisar o estrago. A boca ainda estava aberta, e a língua comprida, cor de rosa, expressava os últimos sentimentos de dor que o animal havia sentido. A jovem encarou o veículo à frente, cerca de dez metros, e não viu sinais da presença de Hélio. Apenas o silêncio, a neblina, e o forte cheiro de rosas de velório, faziam companhia a ela. Então, mesmo temerosa, decidiu que deveria ir à frente do carro.

– Hélio? Você está ai? O que houve? – Indagou, mas não houve resposta.

Quando faltavam poucos metros para o local do acidente, acelerou os passos e rapidamente chegou à frente do Logan. O Policial estava lá, totalmente nu, posicionado de quatro, como se fosse um cachorro, com a boca sobre o pescoço decepado do animal atropelado. Logo em seguida, levantou o olhar e encarou a Jovem.

Enquanto ele o fazia, ao mesmo tempo sugava o sangue, de forma sonora, de uma das artérias que saia do pescoço destroçado da vaca. A imagem era como a de uma criança sapeca comendo um prato de macarronada, usando os lábios para puxar um fio de macarrão, com o rosto lambuzado de molho vermelho. Em seguida, abriu a boca, largando a artéria grossa, que caio ao lado espirrando sangue, e sorriu para Barbara, ao mesmo tempo em que, com uma das mãos – as unhas grandes e pontudas – fez um gesto querendo dizer: – Quer um pouco também? Questionou, sorrindo um sorriso sem graça no rosto pálido, bem barbeado e, agora, sujo de sangue.

Imediatamente, uma mancha escura e quente surgiu e começou a crescer, sobre o jeans, no meio das pernas trêmulas de Barbara. Em seguida, a reação da jovem foi rápida e instintiva. Passou a correr na direção contraria, onde o triângulo fora posicionado. O pânico agia em seu corpo como se um alarme primitivo de proteção fosse soado. Sabia que, a partir daquele momento, deveria lutar pela própria vida. Olhou para trás e não viu Hélio correndo. De inicio, achou que ele largaria o pescoço da Vaca e a perseguiria, como uma Onça faz ao ver a presa indefesa. Então, concentrou-se em correr mais rápido, apesar dos pés frágeis, descalços sobre o asfalto irregular da rodovia.

Naquele momento, lembrou-se do pai, lhe dando conselhos: “- Filha, eu já estou cansado de te falar, nunca dirija com os pés pelados”. Inevitavelmente, sentiu saudades da sua antiga casa, na época em que todos moravam juntos, e a separação não existia. Segundos depois, virou o rosto para trás e não conseguiu ver nada além da traseira do Logan. Aparentemente, o Policial resolvera permanecer sugando o sangue pastoso da vaca morta. Então, observou à frente, até onde os olhos enxergavam, e desejou que um carro, um caminhão, ou até mesmo uma moto, passasse por ali, naquele momento.

Mas o silêncio e a solidão eram mortais. Passou pelo triângulo e continuou à frente, correndo. Até que sentiu uma fisgada na sola do pé direito: havia pisado em uma pedra pontiaguda.

– Droga! Era só o que me faltava!

Por causa do leve ferimento no pé, deixou de correr e passou a andar de forma ofegante, incomodada com o calor úmido e ardido no meio das pernas, em razão da urina quente, concentrada e alaranjada (a primeira do dia) que havia escorrido por toda a extensão das coxas até os joelhos. Olhou para trás, novamente, e já não podia ver o Logan estacionado, nem o triângulo e, muito menos, o Policial. As únicas coisas visíveis eram a cor cinza, sebosa de óleo, do asfalto da rodovia, e o branco fosco da neblina no ar.

Então, continuou mancando, desengonçada. O silêncio era uma agulha que perfurava os tímpanos, e o cheiro de rosas irritava as vias aéreas, dificultando a respiração. Percebeu que a densidade da neblina estava aumentando de forma gradativa.

Logo, a sensação de estar perdida se fez presente, acompanhada do medo de ser atropelada por um motorista imprudente. Dessa forma, dirigiu-se para o acostamento da rodovia e encontrou uma pequena passagem na cerca que havia após a sarjeta.

Aproximou-se e verificou a trilha que levava até uma residência. Sem tardar, acessou o pequeno caminho, se sentindo aliviada pela esperança de poder pedir ajuda.

Durante o trajeto, se questionou: “Que porra uma casa dessas está fazendo aqui, no meio do nada?”. E tudo ficou mais estranho quando se aproximou da entrada. Para Bárbara, o aspecto daquele sobrado, era o mesmo do que ela morava, com os pais, em São Paulo: o portão grande da garagem, e o menor, social, ambos feitos em alumínio; e a pequena varanda no andar superior. Era exatamente uma réplica da residência de sua família. E o detalhe que confirmou essa impressão foi o número, acima do olho mágico, praga lançada por uma mãe.

– Não pode ser! – Argumentou para si mesma, com os olhos (duas pedras de jade) arregalados. Tocou a maçaneta, gelada, do portão social e sentiu o corpo estremecer. Naquele momento, imaginou estar sonhando, pois não havia lógica na situação. Conferiu que o portão não estava trancado. Logo, abriu e entrou. O interior, garagem e acesso para a sala, também era semelhante ao de sua casa. Mesmo estando petrificada, achando que poderia estar vivendo um pesadelo, decidiu ir adiante.

Nesse momento, escutou nitidamente o que parecia ser o som oriundo de duas pessoas fazendo sexo.

O prazer proporcionando as mesas expressões e gemidos que seriam expressos em uma situação de dor – gritos abafados – e o barulho de corpos se chocando de forma, sentiu o coração doer, pois reconheceu aquelas vozes, as quais imploravam, de forma insaciável, por mais prazer, por mais carne.

Então, abriu a porta da sala, a qual rangeu, e viu um homem sentado em um sofá com uma jovem loira, de pernas grossas, sobre ele. Nesse momento, essas duas pessoas, ambas usando mascaras, viraram os rostos e olharam na direção da porta. – Nossa, que estranho! Nem está ventando e a porta abriu! – Disse – Meu Deus! Quase tive um infarto! Achei que fosse sua mãe! – Falou o homem, ofegante, ainda sentado no sofá. Bárbara permaneceu imóvel e apenas observou quando a mulher nua se levantou, caminhou pela sala e, como se não houvesse ninguém, fechou a porta com uma batida seca e mal educada. Naquele momento, ao lado de fora, a jovem reconheceu e entendeu o que estava acontecendo: se lembrou da última vez que fizera sexo no sofá da casa, com o próprio pai, na noite anterior.

Então, conseguiu prever o que iria ocorrer na sequencia. Olhou para trás e viu sua mãe entrando pelo portão social, correndo, desesperada, indo em direção à porta. Em razão de saber o desfecho trágico daquela situação, tentou impedir, mas não adiantou: foi transpassada como se sua presença não existisse. Logo, passou a, apenas, acompanhar os fatos da sua própria vida, os seus próprios pecados.

Que porra é essa que vocês estão fazendo? – Sua vaca! Eu sabia que isso estava acontecendo! Você, sua piranhazinha, não passa de uma vaca, e com certeza vai pro inferno!

– Cala a boca, vadia. Vai embora daqui! – Disse o mascarado.

– Cala a boca uma porra! Mostra a cara de safado, seu filho da puta! Está com vergonha de comer sua filha? Não tem coragem de foder ela, sabendo quem é? Eu tinha certeza… O tempo todo eu sabia.

O homem se levantou, e partiu com fúria na direção da ex-mulher, agarrando-a pelo pescoço e derrubando-a no chão. Do sofá, a moça mascarada gritava para que a briga parasse. Enquanto isso, da soleira da porta, Barbara acompanhava a movimentação, sem ser notada e sem poder interagir. Logo, ela viu quando seu pai apanhou o pesado vaso de argila que estava sobre a mesa de centro e, com apenas um golpe preciso e violento, estourou a testa da mulher. O vazo se quebrou, assim como o crânio, expulsando esguichos de sangue e pedaços de “dura-máter”.

O “assassino” se levantou, sem tirar a máscara. Virou-se para a filha, que chorava de forma desesperada, ainda nua, sentada no sofá.

– Pegue o carro, agora. Sem questionar nada. Dirija até Ribeirão Preto e só pare quando chegar na casa da vó. – Mas e você? Vai fazer o que?

– Cala a boca você também! Não questione nada e apenas faça o que eu falei. Vou ficar aqui e dar um jeito nisso tudo!

Bárbara, que apenas assistia a cena, como uma espectadora VIP, se desesperou. A realidade desceu em seu corpo como água gelada. Deu meia volta e, ignorando o pé ferido, saiu correndo da garagem da casa, indo novamente em direção à rodovia. Quando chegou ao lado de fora, sentiu uma sensação estranha e muito incomoda nos pés. Abaixou a cabeça e percebeu que, no lugar de suas duas pernas, havia duas patas de vaca. Com cascos fendidos. Ficou aterrorizada. Tentou gritar, mas no lugar de um grito humano sua boca produziu um mugido, como o de ruminante.

Sentiu uma dor forte nas costas e costelas. Não conseguiu suportar o próprio peso do corpo e caiu, ficando de quatro. Nesse momento, viu que seus braços e mãos também haviam desaparecido e, no lugar, patas dianteiras haviam crescido. Agora, ela não mais corria. Mas sim, trotava no meio da rodovia, mugindo e se contorcendo, sentindo a cabeça pesada. Até que escutou o som estridente, provocado pela freada de um veículo que deveria estar em alta velocidade. Assustada, deu meia volta, desajeitada, em razão da inexperiência com as quatro patas, e tentou voltar para o acostamento da rodovia. Sentiu uma pancada forte e foi arremessada para a parte superior do capo, batendo violentamente contra o vidro para-brisa.

Em seguida, o veículo – um Renault Logan de cor preta – parou completamente. “Ela” caiu no chão: viva, mas agonizando. Segundos depois, as portas dianteiras do Logan foram abertas. No lado do motorista desceu uma jovem Loira, vestindo calça jeans e camiseta amarela: com os pés, brancos, descalços. No lado do passageiro, desceu um homem usando uma farda da Policia Militar.

– Meu deus, coitada! – Exclamou a jovem, levando a mão tremula à boca. – Ela vai sobreviver? – Indagou em seguida.

– Acho que não! Deve ter quebrado pelo menos duas patas. – Respondeu o Policial.

– Mas não se preocupe com isso, vamos cuidar da nossa segurança. Vá colocar o triângulo. – Completou.

A moça, descalça, abriu o porta-malas do veículo, apanhou o triângulo e caminhou na direção oposta da rodovia, até sua silhueta quase desaparecer em meio à neblina.

Enquanto isso, Bárbara, ou aquilo no que ela havia se transformado, tentava se levantar do chão. Mas as patas quebradas a impediam de fazê-lo, ao mesmo tempo em que porções generosas de sangue eram expulsas da boca, nariz, e anus, em razão das prováveis hemorragias internas, provocadas pela batida.

O Policial, por sua vez, observava e sorria com o rosto pálido, ele então retirou toda a farda, ficou nu e se abaixou. Não possuía uma faca, mas isso não o impediu de lamber as unhas grandes, afiá-las por alguns segundos nos próprios dentes, para depois acariciar o pescoço do animal.

– Desculpe. Aquelas frutas que você me deu não foram suficientes. Ainda estou com muita fome!

E a cabeça foi separada do resto do corpo e arremessada ao céu.

FIM

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