Resolvi aceitar meus pelos e parei de me depilar. Também escrevi sobre a história da depilação, sobre preconceito com mulher peluda e homens que adoram pelos

Para falar sobre os pelos nos corpos das mulheres, vou começar falando dos pelos nos corpos dos homens. Um homem que mantenha a axila, peito, pernas e partes íntimas depiladas pode ser classificado como um metrossexual. Esses caras estampam capas de revista e encantam uma parcela considerável de pessoas. De forma semelhante, homens peludos também têm seu espaço garantido nos discursos que definem o que é belo; barbas e peitos peludos são sinônimo de virilidade e daquela “falta de frescura” despojada. Claro, pelos masculinos podem ser alvo de críticas e certas restrições, mas escolher manter-se peludo não torna infernal a vida de um homem. Enfim, pelos masculinos não são uma questão como são os pelos femininos.

Agora imagine a situação de uma mulher que resolver manter seus pelos crescendo ao natural e sair por aí sem depilar buço, sobrancelha, axila e pernas… Certamente vai receber olhares de desaprovação e ouvir desaforos. E a buceta cabeluda? Sinônimo de falta de higiene, hipponga-claudia-ohana-macaca-feminazi-que-não-transa.

Não seria bem mais legal se a opção de deixar a depilação de lado não fosse tratada com tanto estranhamento? Afinal, depilar dá trabalho, pode machucar, pode custar caro e assim como rola de vez em quando aquela vontade de variar o corte cabelo, às vezes queremos variar o comprimento dos nossos pelos. Aliás, em que momento começamos a endeusar as “partes lisas” e passamos a tratar os pelos das mulheres com tanto nojo?

UM POUCO DE HISTÓRIA DA DEPILAÇÃO

A historiadora Mary del Priore é uma fonte que nos traz algumas luzes sobre a história da depilação. Antes do século XX, os pelos das axilas aguçavam a imaginação dos homens sobre como seria a cor dos pelos pubianos de uma mulher, que por sua vez eram também sinônimo de luxúria:

— As pessoas consideradas ‘decentes’ costumavam se depilar ou raspar as partes pudendas para destituí-las de qualquer valor erótico. Frisar, pentear ou cachear os pelos púbicos eram apanágios das prostitutas (…) Não à toa, nossas indígenas eram consideradas, pelos cronistas seiscentistas, criaturas inocentes (…) suas “vergonhas depiladas” remetiam a uma imagem sem sensualidade. As estátuas e pinturas que revelavam mulheres nuas, o faziam sem pelos púbicos. A penugem cabeluda era o símbolo máximo do erotismo feminino.

As blusas e vestidos de mangas curtas eram considerados escandalosos até a inserção da mulher no mercado de trabalho, quando o incessante levantar de braços nas fábricas popularizou as vestimentas mais abertas e também a depilação — não seria uma boa ideia exibir no ambiente de trabalho aquilo o que eram atrativos sexuais até então. As moças “direitas” começaram então a se depilar, a indústria da higiene ganhou mais um nicho para faturar e, com a associação crescente da depilação à noção de higiene, a “mulher lisa” foi ganhando hegemonia.

PAREI DE ME DEPILAR

Relatos de dor e dúvidas sobre a retirada dos pelos ainda nos primeiros anos da adolescência são bastante frequentes. A primeira depilação a gente nunca esquece, geralmente para o mal. Sobre essa experiência conversei com a Daitana, que encontrei em uma postagem do Facebook na qual diversos homens apontavam o horror que sentiam dos pelos femininos:

— Meus pelos eram longos, acinzentados e finos. Eu usava muitos vestidos e saias, geralmente com meia-calça, mas quando saía sem ela não me lembro de nenhum comentário negativo. Um dia, quando eu tinha uns 14 anos, minha mãe disse que meus pelos estavam muito grandes, pegou o aparelho elétrico e depilou minhas pernas. Doeu muito e demorou uma eternidade. Depois disso comecei a usar cera quente e acabei comprando meu próprio aparelho elétrico. Desde então, nunca mais parei.

Eu, a repórter que vos fala, tinha onze anos de idade quando meus primeiros pelos começaram a despontar na axila, virilha e pernas. Talvez tenha sido a revista Capricho, talvez o mero ato de observar as mulheres ao meu redor que me dizia cada vez mais alto: tira isso daí. Como eu não tinha nenhuma grana para ir ao salão, pedi ajuda pra minha mãe:

— Acho que já pode depilar sim, você já está ficando mocinha…

Ela me explicou que eu deveria ensaboar bastante a pele e depois passar a lâmina. Eu sentia como se uma lixa me dilacerasse, mas repetia a tortura em cada parte do corpo onde havia pelos mais abundantes, pois eu fazia aulas de natação e precisava estar sempre “em dia”. Aos onze anos de idade.

A Xplastic já fez ensaios para quem sabe admirar os pelos naturais femininos. Confira aqui  um deles

FEMINISMO E AS QUESTÕES DA MULHER PELUDA

Treze anos depois a lâmina ainda continua sendo minha companheira inseparável, nunca a troquei pela depilação em salão de beleza. Uma vez por semana na virilha, nas pernas e axila; nos tempos frios tenho uma folga maior. Apesar de a depilação ainda me perseguir, nos últimos tempos deixei de fazer as unhas, de mexer no desenho das sobrancelhas, passei a usar coletor menstrual em vez de absorventes descartáveis, parei de usar secador nos cabelos e só penteio os fios usando os dedos. Rituais de beleza enfadonhos que fui largando aos poucos, e hoje me sinto bem assim, um pouco mais ao natural.

Sou feminista, mas eu ainda poderia ser se mantivesse toda a pesada rotina de beleza da adolescência, afinal o feminismo nos ensina que há outros caminhos além da ditadura do corpo. Ao contrário do que pensam os críticos, ele não nos obriga a nada, quem obriga é o machismo. Buscando, então, a liberdade de optar, eu decidi parar de me depilar um mês antes de publicar esta reportagem.

REAÇÕES QUANDO PAREI DE ME DEPILAR

Das reações contrárias que eu esperava, vieram quase todas, mas nada muito incisivo: recebi olhares de reprovação no metrô ao levantar os braços, um ou outro na academia e no trabalho. As pernas não espantaram ninguém, pois a penugem é fina e o outono atuou como certo esconderijo. Não pude deixar de imaginar que se eu estivesse procurando emprego, provavelmente não teria tanta coragem de exibir meus pelos. Ninguém chegou a me abordar negativamente, mas ouvi algumas brincadeiras de amigos que, conhecendo-os como são, provavelmente não ligam muito se virei uma mulher peluda ou não.

Na verdade, fui eu mesma minha maior inimiga nesta fase; passei a sentir certa raiva da aparência das minhas axilas e virilha. Não reparei em alterações na quantidade de suor ou no cheiro e concluí o que eu já imaginava: não tem nada de sujo na falta de depilação, muito menos de nojento. O toque é gostoso, é prazeroso sentir o macio dos pelos, no entanto, meu senso estético não absorveu muito bem toda essa experiência e (ainda?) não enxergo beleza nas partes peludas do meu corpo, mesmo já tendo desejado diversas vezes parar de me depilar sem me sentir mal.

CESSAR O ÓDIO CONTRA A MULHER PELUDA

Uma das fotos do Coletivo Além

Diante das dificuldades enfrentadas pelas mulheres para simplesmente mostrar sua aparência sem a intervenção da depilação se ergue a militância, colocando em cena o diálogo e as manifestações artísticas. O ensaio político-poético Pelos Pelos, do Coletivo Além, traz fotos e depoimentos de mulheres e homens cujos corpos se transformam em armas contra a discriminação.

Teve um cara que ao me ver passando na frente na mesa do bar que estava sentado, deu um soco na mesa, se levantou e gritou para as pessoas repararem que minhas axilas eram peludas — Julia

Conversei com o Mateus Lima, que junto com Nubia Abe criou o coletivo. Abaixo seguem alguns trechos das respostas do Mateus:

— A ideia surgiu pela necessidade de abordar temas políticos em projetos fotográficos que envolvessem questões de gênero e que fossem visualmente impactantes pra causar a reflexão que gostaríamos.

— As pessoas dos primeiros ensaios foram mais difíceis de encontrar, pois o trabalho ainda não havia se tornado público. Depois que colocamos o projeto no ar com três ensaios, foi uma avalanche de e-mails e contatos da mídia, o que gerou uma facilidade em encontrar novas pessoas para os ensaios.

— Nós nos afetamos muito com o todo e com cada pessoa que encontramos, com cada ensaio, com cada história que nos contam. São pessoas incríveis, com força e bons exemplos de enfrentamento. Nubia, por exemplo, passou a deixar os próprios pelos crescerem e hoje isso faz parte da personalidade dela. Claro, além de processos subjetivos que passaram a estabelecer novas maneiras de lidar com o mundo e modificaram nossos comportamentos.

OLHA A CABELEIRA DA ZEZÉ

Julia Guadagnucci decidiu parar de se depilar há um ano em razão da militância. Ela vem postando no site Cabeleira da Zezé  fotos e textos sobre o empoderamento que os pelos podem proporcionar:

— Minhas axilas peludas são a bandeira que eu carrego, reivindicando meu direito de decisão sobre meu corpo, minha liberdade e minha luta contra o padrão de beleza que afeta negativamente todas as mulheres.

— As axilas geram o maior impacto. Já vi pessoas tirando fotos dentro do metrô, rindo, machistas me xingando de nojenta. Teve um cara que ao me ver passando na frente na mesa do bar que estava sentado, deu um soco na mesa, se levantou e gritou para as pessoas repararem que minhas axilas eram peludas.

FETICHE POR MULHER PELUDA

A exceção prova a regra e, muitas vezes, um fetiche prova que existe preconceito ou proibição em relação a ser uma mulher peluda. Pode não ser muito confortável para algumas mulheres saber que existem homens fetichizando o que há de natural e político em seu corpo — enquanto para outras pode ser uma delícia. O fato é que esses caras existem.

Leonardo Filho, dono do site Sex Imaginarium, faz parte da parcela de homens que adora uma mulher peluda. Ele tem 52 anos e torce para que a moda da depilação total passe logo:

— Bucetas e pernas muito depiladas me lembram crianças, sinto mais atração por mulheres maduras com pelos, mas aparados. Atualmente peço que minha parceira deixe os pelos e que depile um pouco. Tive um relacionamento com uma mulher que tinha farta cabeleira na buceta e no cu, não depilava nada, só aparava um pouco e isso me dava muito tesão. Passados alguns anos, saímos novamente e ela tinha depilado tudo. Broxei.

Homem Serrano é outro admirador dos pelos fartos e ressalta as sensações que os pelos provocam na hora do sexo:

— Quando a mulher fica lubrificada os pelos massageiam uma parte do pênis e isso me excita muito, o toque é diferente, pois uma vagina depilada totalmente me remete à infantilidade. Tenho tesão por mulheres e não por meninas, gosto de mulheres decididas e maduras, fortes e libidinosas.