Quando a Xplastic me convidou para assistir ao espetáculo Stabat Mater, eu estava em uma festa. May Medeiros, uma das diretoras da produtora, virou para mim e disse “Vai! É a sua cara. Acho que você vai gostar de escrever sobre”.
Mal sabia ela que estava muito errada. Não gostei de escrever sobre. Doeu em mim de tantas maneiras que, ao fim desse texto, me senti total e completamente destruída. E para uma peça de teatro, isso significa algo bom.
Foi numa sexta-feira que meu ônibus costumeiro para o centro de São Paulo resolveu atrasar. Ao que aparentava, um pequeno acidente causou trânsito na avenida, o que me fez chegar com meia hora de atraso para tomar um café com Janaína Leite, diretora, atriz e idealizadora de Stabat Mater, e com a May. No ônibus, enquanto estava desesperada e formulando jeitos de me desculpar pelo atraso, fiquei pensando nas cenas que assisti no domingo anterior e que revisei várias vezes durante a semana.
Este texto começa pelo fim
Stabat Mater traduz-se para “estava a mãe”. Quando li a sinopse, podia jurar que se tratava de uma peça religiosa. — Não que não seja. Mas não é. Não exatamente. — Então eu estava preparada para ouvir cânticos cristãos e toda aquela coisa em volta da Virgem Maria.
Houve uma virgem, houve Maria, e houve uma terceira mulher cujo adjetivo você deve descobrir por si só. Também houve Janaína, e houve sua mãe. Sua mãe de verdade, no caso. Dona Amália Fontes Leite estava no palco, toda bonitinha, quando cheguei. Palco esse que me lembrou muito uma peça de teatro onde eu atuei, e que de certa forma também falava sobre mães. Fiquei nostálgica assim que entrei e me sentei. Janaína cumprimentava as pessoas, dona Amália também. Ela tem uma carinha doce de vovó, mas não no sentido físico da palavra, e sim na sensação de acolhimento que só uma mulher que foi duplamente mãe pode transmitir. Aquele tipo de vovó que faz tudo por seus filhos.
Nunca pensei que essa última frase seria tão literal.
Amália Fontes Leite, a mãe, não é atriz, mas foi. E também foi diretora. E também se abriu para o público. E também cantou. Uma cantiga de ninar que honestamente não me lembro a letra, mas me lembro do tom de voz que ela usava.
Uma das primeiras coisas que pensei quando a peça finalmente começou — fui em uma abarrotada e concorrida última apresentação no Centro Cultural São Paulo, então tudo estava “começando pela última vez” — foi que eu deveria ter assistido Conversas com meu Pai, outra peça da Janaína. Ficou claro desde o início que as duas peças estão interligadas de um modo que eu talvez apenas entenda quando encaixar os pedaços. Talvez, só talvez, o quebra-cabeças faça sentido, mas pode ser uma necessidade minha de ilusão. Talvez não mude nada, talvez mude. Quem sabe? De toda forma, a falta de Conversas com meu Pai não abalou minha experiência. Só me deixou com mais vontade de assistir Stabat Mater.
De início aprendi que “Virgem Maria” foi um erro de tradução. E que, naturalmente, as pessoas se aproveitaram disso sem saber da verdade dos escritos, colocando todas as suas necessidades e inseguranças ali, naquela figura. Exatamente o que fazemos com as nossas mães. E que Janaína vai nos apresentando, fazendo um papel de palestrante, numa torrente de informações que eu fui sentindo como tapas na cara.
Voltando para o ônibus, quando cheguei ao café, May e Janaína estavam já sentadas e conversavam num fio ininterrupto, que eu não quis mesmo interromper. Deveria ser uma entrevista, é verdade, mas eu estava mais preparada para escutar do que para perguntar. Falavam de Príapo, o profissional, que deixou a peça antes mesmo de ela começar.
Em Stabat Mater, há uma filmagem de uma cena pornô com Janaína. E durante a peça, vamos descobrindo que a cena foi dirigida por sua mãe, e que Janaína contratou um ator pornô de verdade. Que houve um casting onde homens profissionais da indústria foram entrevistados, um a um, por ela e pela sua equipe. Essas entrevistas estão na peça, em gravações.
O ator escolhido foi nomeado Príapo, isto é, nome de um dos Deuses da Fertilidade, da virilidade. Guardião dos sátiros e das florestas, conhecido por ter um pênis exageradamente grande. Também é chamado de Pã. Um nome tão forte precisaria ser de um ator igualmente forte, por isso Janaína escolheu dentre os maiores nomes. O Príapo profissional seria ele que é atualmente o número um no ranking mundial do XVideos. Eu disse que “seria”, porque ele desistiu.
Como atriz, tanto na indústria pornográfica quanto de teatro, só consigo imaginar o deslocamento e a função provocativa de Janaína em pinçar, dentre muitas opções, um ator pornô. A todo momento na peça temos a sensação de que tudo foi planejado nos mínimos detalhes para que alguém se sentisse provocado. Chamar um ator pornô para os palcos de um teatro. Uma atriz acostumada com tablado e plateias intelectuais fazer uma cena pornô sem antes ter experiência na área. Uma mãe vendo a filha transar, e depois ver isso ser filmado. Um público descrente.
Foi uma experiência complexa para todos os envolvidos, e digo isso não por sentir ou achar, mas por conseguir enxergar.
Depois de escutar o que May e Jana conversavam naquele café, cheguei à conclusão mais óbvia de todas: A sexualidade ainda é a forma mais íntima de exposição. Para um ator pornô, o senso comum diz que deveria ser fácil expor seu corpo em um teatro, afinal, ele já se expôs em todas as outras plataformas. Mas não foi fácil. O deslocamento me prova todos os dias que os seres humanos são muito mais complexos do que a minha hipocrisia julga à primeira vista.
Não foi fácil para ele, mas também não para ela. Janaína Leite, vencedora de diversos prêmios dentre eles os conhecidos BRAVO e Shell, com filmes, peças e direção no currículo, estava abrindo muito mais do que a intimidade sexual – estava abrindo a intimidade familiar para o público. Para ela, mesmo para ela, também foi um desafio. E imagino que tenha havido medo.
Mas, apesar das desistências, a cena aconteceu. Não do modo como Janaína e Príapo inicialmente planejaram, é claro. E tudo isso só me fez pensar que a comunidade pornográfica tem muito mais medo do mundo do que o mundo tem de nós.
“Você está preparada para ser outra pessoa depois disso?”
(Ator pornô, num vídeo exibido no meio do palco)
Eu respondo: não.
E também não estava esperando por isso. A pergunta foi direcionada à Janaína Leite, mas me atingiu também. Eu não estava preparada para ser outra pessoa depois de Stabat Mater. E também não esperava estar. E talvez tenha sido melhor assim, porque me preparar criaria uma barreira muito difícil de romper. Em outras palavras, minha fragilidade perante ao texto do espetáculo foi o que o permitiu me afetar.
Conforme a peça foi avançando, houve um paralelo entre Virgem Maria, filmes de terror e pornografia, e então entendi o que May Medeiros quis dizer com “é a sua cara”. Qualquer coisa que ligue pornografia e terror já é a minha cara — e me senti honrada por isso, algo que me tornou distinta dos demais.
A forma como a montagem foi feita, não em um comum palco italiano onde a plateia fica abaixo e o palco fica um pouco acima, mas em um desconexo fundo envolto por tecidos, luzes e pilastras, ajudou a criar um clima de filmes de terror. O segundo Príapo (chamado de Príapo amador, elemento novo que surgiu após o saída do primeiro) fazia parte de uma extensa colocação de cenas onde, por um momento, jurei que faria parte de um Slasher autêntico, ao vivo.
E então, houve a cena que o programa, livreto sobre a peça que recebemos no início da apresentação, classifica como “passagem brusca para ambiente onírico”. Como num sonho.
Janaína não parecia assustadora desde o início da apresentação, mas, exatamente como num sonho e numa das minhas viagens sobre o horror, transformou-se. Essa foi a primeira vez em muitos anos que vou ao teatro que senti algo parecido com medo.
O ambiente onírico era uma festa, com um pole dance, e máscaras anônimas, e algo sobre filhos dançando sensualmente para os pais, e eu me perguntando o que aquilo tudo tinha a ver com Amália Fontes Leite, e me perguntando o porquê aquilo tudo estava me afetando tanto. Fiquei sem ar na plateia.
Para mim, é a melhor cena de toda a peça, por isso me recuso a entrar em detalhes nela, porque estou editando o texto agora que descobri que Stabat Mater vai voltar para poucas apresentações nesse mês de setembro de 2019, de 04 a 12/09, no Teatro de Conteiner. Vá assistir. Leve como uma ordem.
São muitas cenas que, se não chocantes, são assustadoras. Não pelo gráfico ou pela sexualidade envolvida, mas por ser tão pessoal quanto a assistir um diário. Um diário com detalhes demais.
Ao fim da peça tantas coisas se passaram em minha cabeça que não houve nenhuma pergunta, apenas uma imensa vontade de gritar por um abraço. E ouvindo Janaína Leite naquele café antes do almoço, eu pude perceber que não fui conhecê-la para entrevistá-la, fui conhecê-la para desabafar com ela, na tentativa de resolver as dores que surgiram na minha cabeça instantes depois do espetáculo terminar, e que permaneceram comigo durante a semana. Eu queria ter estendido meu tempo após a saída do público, quem sabe conversar com ela. Mas como era a última apresentação, todas elas, a mãe, a filha e as mulheres que aquela peça envolvia tinham muito o que fazer.
Stabat Mater teve montagem e execução feitas quase que exclusivamente por mulheres. Isso me deixou orgulhosa, mas ao mesmo tempo apreensiva, quando vi a pornografia sendo citada. Eu não estive envolvida em nada, mas me peguei com medo delas. E olha que a peça sequer se centrava muito na pornografia, eu é que estou me centrando aqui, porque nós da indústria pornográfica sempre temos medo do que outras mulheres vão achar.
No meio do processo ainda temos o facão, e no programa recebemos a história do facão, e o facão é tão presente que não consigo explicar o que ele significa sem estragar sua experiência. Você só precisa saber que existe um facão, que ele está lá e que ele me causou arrepios.
Também temos a experiência sobre o termo Final Girl dos filmes de terror. Experiência mesmo, você deixa de ser um espectador e passa a ser um experimentador, ainda que passivo. E temos a Virgem Maria, e o que acreditei ser a história finalmente contada de uma parte esquecida em Conversas com meu Pai: Amália Fontes Leite. Ela mereceu uma peça só dela, envolta em sua figura. Precisei de pouco tempo para chegar a essa conclusão.
Quanto à Janaína, nossa conversa envolveu a indústria pornográfica, o teatro, o papel da mulher em destruir (não desconstruir) estereótipos e sobre como somos vistas. E sobre mães, é lógico. Não tive a oportunidade de dizer isso quantas vezes eu gostaria, mas foi um prazer conhecer Janaína Leite. Deixo aqui o meu agradecimento também a May Medeiros, que me permitiu essa experiência.
“Você aceitaria fazer uma cena de sexo comigo dirigido pela minha mãe?”
Chegando ao final, vemos a bendita cena cujo mistério é construído desde o início. É bonita, e o fato de dona Amália estar ali no palco me deixou ainda mais encantada. Vemos até mesmo a preparação, onde Janaína treina poses em cima de uma cama com o Príapo profissional, enquanto sua mãe está sentada numa cadeira, num misto de riso e constrangimento.
Quando termina a cena ouvimos um áudio enviado por whatsapp para Janaína, daquele ator que assistimos há instantes, explicando seus motivos e então abandonando a peça. A atriz diz que essa cena, é claro, não estava no planejamento inicial, e foi na reflexão dela sobre o ocorrido que vi a razão pela qual eu estava tão afetada.
Esse artigo é tão pessoal que preciso pedir licença para dizer algo sobre mim.
Eu e minha mãe somos complicadas. Sei, do fundo da minha alma, que puxei muito dela, inclusive e principalmente o que não gostaria de ter puxado. Quem me acompanha pelas redes sociais ou sabe do meu trabalho já deve ter percebido que não costumo falar da minha família, mas vou me permitir agora. Minha família não conhece meu trabalho. Minha mãe não conhecia.
Assisti Stabat Mater num domingo. Encontrei Janaína Leite na sexta seguinte. Entre isso, na quarta-feira… eu contei à minha mãe sobre meu trabalho na pornografia.
Culpar a peça pela minha súbita coragem não é de todo errado. Quando saí daquele teatro e voltei para casa de metrô, desabei de chorar no transporte, e uma das frases que Janaína proferiu estava martelando a minha cabeça:
“A todo momento, a cada passo, eu achava que ela ia recuar, abandonar tudo isso aqui e que, talvez, eu tivesse pedido demais, esperado demais dela. (…) Mas não podia ser mais óbvio o nosso desfecho. Claro, ele partir, e ela ficar. Mais uma vez, Stabat Mater.”
De nenhum modo sou entusiasta da romantização da maternidade, e espero deixar isso claro enquanto escrevo. Mas eu só tenho uma experiência como filha, e só terei uma para o resto da vida. Mãe mesmo, só a minha. A minha mãe não fugiu, não me abandonou, não recuou, não me bateu, não gritou comigo. Ela me ouviu, me compreendeu, me abraçou, me acolheu e se preocupou. Ela fez perguntas. A minha mãe não teve medo, não teve repulsa, não me expulsou. Depois de tanto tempo segurando a verdade inevitável sobre minha vida, eu disse, esperando que ela fosse embora de mim. Mas a minha mãe também ficou.
Mais uma vez, Stabat Mater.
Este artigo não necessariamente representa a opinião da Xplastic.