Entrevistei algumas pessoas envolvidas com bareback e comunicação sobre a AIDS para saber se tudo aquilo o que falam sobre o misterioso clube do carimbo é real

Dois pesos, duas medidas

Fazer sexo sem camisinha (ou bareback) é um ato que pode suscitar opiniões bem diversas a depender da orientação sexual do indivíduo. De um heterossexual casado, espera-se que a camisinha não seja um acessório presente nas transas. Usar camisinha com a esposa? Mas e a confiança? Aliás, a procriação da família tradicional, como fica?

Claro, o doutor vai sempre recomendar que o casal esteja em dia com os testes de DSTs. No entanto, na prática, quem realmente faz isso? Quantos são fiéis à mesma parceira? Enfim, vale lembrar que o sexo anal é cada vez mais popular entre os casais heterossexuais e que ele oferece 18 vezes mais risco para o HIV do que a penetração vaginal.

Já no caso dos heterossexuais solteiros a regra tácita é usar camisinha sempre, esteja você em dia ou não com os testes. Agora, se você é homossexual, bissexual, pansexual, ou qualquer coisa “errada”, esqueça. Portanto, caso você tome a decisão de não usar mais camisinha a sociedade vai te apontar como membro do clube do carimbo, vetor de doenças, psicopata que brinca com a própria morte e com a morte alheia. Repare que quanto mais abaixo você se situar nos “degraus da promiscuidade”, menos liberdade você terá para decidir sobre sua própria sexualidade.

Entre homens que transam com homens o caráter proibido do sexo desprotegido foi impulsionado pela epidemia do HIV. Isso fez com que a prática ganhasse contornos de um fetiche com direito a grupos virtuais e festas quase secretas. Esse cenário popularizou o termo bareback, que passou a ser socialmente visto como doença mental e crime.

O que têm a dizer os especialistas?

Para entender toda a história do bareback, entrevistei Paulo Sergio Rodrigues de Paula, o autor de Barebacking sex: a roleta russa da AIDS?. Ele pesquisou a fundo os discursos sobre o assunto na internet, imprensa e no meio acadêmico. Para ele, falta educação sexual, além disso, um dos problemas é que ainda estamos muito apegados à associação dos homossexuais com o grupo de risco:

“Estatisticamente os homossexuais são 11% mais infectáveis pelo HIV que os não homossexuais. Isso implica dizer que a chance de um homossexual ser infectado ou infectar outra pessoa é bem maior. O problema é que atribuem esse fator a questões morais, enfatizando que gays transam mais, têm mais parceiros e são promíscuos. Não se trata de uma questão moral, mas sim de uma questão social. Enquanto os heterossexuais dispõem de uma quantidade enorme de locais para sociabilidade, os homossexuais são empurrados para o gueto.

Assim sendo, se existirem 50 homens soropositivos heterossexuais numa cidade de 500 mil habitantes, no happy hour eles estarão espalhados por toda a cidade, ao passo que se nesta mesma cidade existir apenas cinco homens soropositivos homossexuais, a probabilidade de estarem no mesmo local será bem maior, aumentando consideravelmente os risco de infecção em caso de sexo sem preservativo.”

O estigma do clube do carimbo

Apesar de todo o tipo de gente praticar o sexo anal “no pelo”, os termos bareback, sem látex e até rolês mais pesados como roleta-russa e clube do carimbo são rótulos destinados apenas ao público gay. De tempos em tempos pipocam na mídia reportagens sobre festas em que homens soropositivos transam com o intuito de compartilhar o vírus. Muitas vezes, as reportagens trazem postagens em comunidades virtuais que ensinam formas de trapacear para disseminar a doença. Esses “carimbadores da AIDS” existem, mas também existem lacunas a serem preenchidas sobre o assunto.

Primeiramente, imagine que você é um dos caras que escolheu transmitir HIV de propósito, então antes de tudo, você precisa saber que é portador. Suas motivações para sair por aí contaminando podem ser as mais variadas, indo desde o argumento político de “popularizar” o vírus para que os governantes sejam obrigados a investir mais em pesquisa e tratamento. Ou até mesmo pelo prazer sádico em saber que causou uma doença incurável em alguém. Além disso, muito provavelmente, você será um paciente em tratamento, a não ser que você também tenha escolhido morrer.

Clube do Carimbo é real mesmo?

Assim sendo, não fica difícil perceber o caráter de exceção da existência desses carimbadores. Um dado do último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde ajuda a pôr em xeque o clube do carimbo. Ele mostra que dentre as pessoas maiores de 18 anos vivendo com HIV e que fazem o tratamento há pelo menos seis meses, 90% têm carga viral baixa e estão em supressão viral. Nesses casos, o histórico de transmissão registrado até hoje na medicina é nulo. No ano de 2014 o diagnóstico chegou a 83% das pessoas e a adesão ao tratamento a 62%, segundo o mesmo boletim.

Além disso, outra lacuna está em associar a transmissão proposital diretamente à prática de bareback. Os adeptos furam camisinhas, ou livram-se delas no meio da penetração sem o parceiro perceber. Mas se existe uma camisinha na transa, não estamos falando de bareback, certo? Ou seja, não faz sentido pensar que o clube do carimbo” representa o bareback e muito menos a totalidade de homens que transam com homens.

O perigo está em não saber

Na verdade, a maior parte das transmissões de HIV vem de pessoas que não sabem que possuem o vírus. Paulo Sergio acredita que a mídia prestaria um melhor serviço se voltasse sua atenção às pessoas que não se reconhecem como grupo de risco de qualquer tipo de infecção sexual, muito menos pelo HIV:

“Ao invés de focar no sensacionalismo e em pessoas soropositivas ou não, que mantêm relações consensuais sem preservativos sabendo dos risco e algumas vezes em busca da infecção, a imprensa poderia se voltar mais aos soro-ignorados. São pessoas que nunca fizeram os testes, não sabem seu status sorológico e podem ser agentes transmissores não apenas de HIV, mas também de sífilis, hepatites virais, dentre outras.”

Tendo tudo isso em mente, podemos começar a falar sobre uma prática consensual entre adultos.

Sobre transar sem camisinha e “sentir na pele”

Afinal, porque um homem adulto e bem informado sobre a transmissão do HIV desde o começo da adolescência escolhe transar “no pelo” sem se preocupar em saber se seus parceiros soropositivos estão com a carga viral baixa? Vitor P. tem 26 anos e é adepto do bareback desde os 20. Ele diz que essa tentativa de saber se o cara tem ou não HIV antes de transar é uma “mentira conveniente” que não se aplica à realidade cotidiana:

“No dia a dia da nossa vida sexual a gente só vai saber a partir do momento em que o cara se torna um parceiro de muitas transas. O que rola pra uma pessoa solteira como eu é transar do jeito que dá. Muitas vezes isso inclui estar bêbado, ou estar com tesão demais pra sequer perguntar o nome do indivíduo, quanto mais sorologia. Entretanto, eu considero que a minha vida sexual já é por si só uma roleta-russa e pra isso nunca precisei ter contato com as festas secretas e clubes. Eu detesto camisinha, mas não seria correto dizer que eu caço o vírus. Também seria hipocrisia dizer com honestidade que eu estou me prevenindo. A realidade não é tão precisa quanto as cartilhas gostariam que ela fosse.”

Jovens e a relação com o bareback

Uma das preocupações do último levantamento do Ministério da Saúde é sobre o número crescente infecções em jovens de 15 a 24 anos. Dentre eles, os casos novos passaram de 3,4 mil no ano de 2004 para 4,6 mil em 2014, um crescimento de 35,3%. Além disso, existe a certeza crescente de que viver com AIDS não é mais a tragédia que era nas décadas passadas, as diversas pressões a que somos submetidos entram nesse jogo de forças, como explica Paulo Sergio:

“É difícil fazer o jovem colocar em prática o que pregam os manuais de sexo seguro, porque eles concorrem com um universo de informações que se contradizem”

A mídia diz “transe, goze, beba, fume, supere limites, use esse corpo sarado e gostoso que você tem”, a medicalização diz, “não fume, não beba, não coma gordura, não seja obeso, use camisinha, senão você pega AIDS e a culpa é sua” e a indústria farmacêutica diz “mas se você correu o risco, nós podemos te ajudar!”. Como articular tudo isso na cabeça destes jovens? Não sei.

Com a palavra, soropositivos

Diego, autor do blog Diário de um Jovem Soropositivo ressalta a importância de aumentar a testagem de HIV. Atualmente, há exames laboratoriais e os testes rápidos que detectam os anticorpos contra o HIV em até 30 minutos; ambos são realizados gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS):

Para diminuir o número de novos infectados a cada ano mais pessoas precisam fazer o teste e criar o hábito de sempre fazê-lo, especialmente quando falharem em usar a camisinha. Para isso, o teste de HIV não pode estar em volta de medo, neuras e associações negativas. Com menos medo, as pessoas tendem a fazer mais testes. Com mais testes, mais pessoas que tinham HIV e não sabiam começam o tratamento antirretroviral e, assim que ficam com carga viral indetectável, não transmitem mais o vírus. Não é legal ter HIV, assim como não é legal ter qualquer outra doença ou condição de saúde.

Como é viver com HIV?

Jefferson Cardoso, autor do blog Viver com HIV é contrário ao bareback e pensa que uma das causas da disseminação dessa prática está na falta de “sentir na pele” o que realmente é viver com HIV:

“Na verdade, a gente sempre acha que o HIV vai acontecer com os outros e nunca com a gente. Sou soropositivo há 14 anos e uma das coisas que aprendi com a doença é que não é fácil de se conviver com ela, por isso hoje eu sou contra o bareback. Sempre que me procuram pelo blog eu alerto sobre os riscos de várias infecções além do HIV. Os remédios que temos de tomar pelo o resto da vida causam efeitos colaterais terríveis, como a lipodistrofia, diarreia, náusea e tonturas.

E esses são os efeitos considerados leves! Os remédios podem ser tóxicos aos rins e ao fígado e causar outras doenças. Além disso, todo soropositivo precisa ter a preocupação constante em manter a sua imunidade alta, porque se estiver baixa podem, surgir doenças oportunistas como a tuberculose (que eu já tive) e a pneumonia (que eu também já tive). Sem falar em todo o estigma e preconceito que existe em cima do assunto. Não pensem que é fácil, pois não é.”

O prazer do bareback

As falas de quem faz bareback tentam justificar a rejeição à camisinha também apontam em uma direção: os preservativos são anti-naturais, o que transformaria o sexo em algo estéril e medicalizado. Numa conversa breve com um barebacker que encontrei em um blog e usa o nickname de Shoopotudo, consegui uma boa síntese dessa ideia:

“Curto tudo ao natural, não só o bare. Prefiro transar sem drogas, perfumes e objetos, porque assim é bem mais gostoso.”

Paulo Sergio considera que a falta de afeto pesa muito nos discursos sobre prevenção:

“Deixamos o afeto escapar das nossas falas, das nossas intervenções. Não o consideramos como algo importante nas nossas políticas de prevenção, pensamos apenas no corpo biológico, na matéria. Entretanto, falamos de sexo e esquecemos da sexualidade, falamos de corpos que adoecem e não de corpos que sentem prazer, falamos de corpos que se infectam e não de corpos de se afetam, falamos de pathos e não de prazer. Precisamos mudar nossa forma de fazer prevenção.