Já tem meses que quero escrever esse artigo. Primeiro porque é de um assunto que muito me interessa, arte. E segundo porque é de um evento que também muito me interessa, a CCXP.
Desde a minha primeira vez no evento, descobri que gosto de colecionar prints de ilustrações que os artistas nacionais e internacionais vem vender na feira. A chamada Artist’s Alley é uma enorme área da CCXP que reúne desde escritores, ilustradores e até mesmo alguns escultores.
Assim, é necessário dizer aqui que não tenho mais parede pra tanta ilustração que coleciono.
Obras eróticas na CCXP
No entanto, neste ano eu fui para a CCXP com uma missão: encontrar autores com obras eróticas ou que beiravam ao erotismo. Sem muitas expectativas, confesso, uma vez que a feira é frequentada por todo tipo de gente, de idades e gostos diferentes. E convenhamos que eu e você sabemos bem o que a maioria do público acha da arte erótica, certo?
A primeira mesa que visitei, à pedido da própria Xplastic, foi a do artista Bräo. Tanto seus livros quanto seus prints exibiam mulheres nuas, em posições sexuais e de maneira bem explícita. Uma que me chamou a atenção foi, por exemplo, a de um livro com uma pequena tarja de papel cobrindo os seios do desenho.
Bräo
Tal foi minha surpresa quando perguntei a ele se sofria algum tipo de preconceito em alguma das feiras que já frequentou, e recebi a seguinte resposta: “É tranquilo. É bem tranquilo. Não sei… Pode ser porque talvez eu procuro ter na minha mesa os dois. Tem gente que vem procurando o erótico e vê meus desenhos fanart, e gosta. Tem gente que passa, olha a fanart, descobre o erótico e acaba gostando também” . Eu podia jurar que tanto Bräo quanto outros artistas poderiam não apenas sofrer preconceitos com suas artes, mas como até mesmo serem barrados de feiras.
Bräo me garantiu que não, que, inclusive, acaba tendo mais experiências positivas do que negativas: “Tem pai que vem nesse tipo de feira só acompanhar os filhos. Não tá nem aí pra Batman, Super-Homem e tal… Aí passa na minha mesa, vira a criança pro lado e fica ‘Pô, tem coisa pra adulto também’, sabe? É interessante. E eu tenho essa responsabilidade de tapar as partes mais eróticas das ilustrações. Essas feiras tem todo tipo de gente, não quero ser responsável por alguém ver algo antes da hora.”
Já nessa hora eu estava completamente surpresa. Sei que a CCXP não é um lugar muito conservador, mas eu, de verdade, não esperava que artistas eróticos fossem tão bem recebidos e – melhor ainda – conseguissem espalhar sua arte. Caso você tenha interesse nas artes de Bräo, ele tem uma loja online brasileira onde vende prints e HQs. Aí não deu, né? Tive que levar um pra casa. E enquanto escrevo esse artigo, descobri que o livro que comprei, Diva Satânica, teve suas últimas unidades vendidas na CCXP.
Sulamoon
Minha próxima visita já era conhecida de outros carnavais. Sulamoon, ou Ursula Dorada, como preferir, é uma artista que ficou famosa pelo tumblr. Aliás, ela ficou conhecida, além do traço marcante, por suas fanarts de personagens LGBT+ não-canônicos, como os dois vistos acima.
Quando abordei a Sula, perguntei primeiro como é o processo de imaginar e colocar no papel cenas e personagens que não são vistos de forma oficial nas plataformas, como é imaginar cenas que teoricamente nunca existiram. Ela me respondeu, animada: “Tem mais de uma dificuldade. A primeira é técnica. Colocar duas pessoas interagindo… ou três… ou quatro… (risos) é uma técnica divertida, é um desafio. Então fazer uma imagem com uma composição legal, é um desafio e é divertido de se tentar.”
E quando se fala de mídias que não incluem personagens LGBT+ e cabe aos fãs produzir esse material, Sula foi muito direta: “E tem um outro lado desse desafio, que é quando a gente consome a mídia ‘oficial’, e a história não vai pro lado que a gente quer que vá… sempre parece que tá faltando alguma coisa. Então falaram pra gente… quer de outro jeito? Faz! (risos) E aí a gente fez.”
Sulamoon faz parte dos órfãos do Tumblr, que recentemente resolveu banir todo o conteúdo pornográfico, atingindo também artistas que faziam parte desse segmento ilustrativo. Tanto é que em seu Tumblr oficial uma boa parte das artes foi apagada. “Como artista eu estou me sentindo meio órfã. O Twitter não é uma boa rede social pra esse tipo de arte. Eu sinto que não tem nenhum site onde minha arte vai ser bem acolhida, onde eu possa ter uma galeria de fácil acesso, onde esse material com um aviso de que não é para menores, mas que também não vai ser banido e nem julgado e que possa ser realmente apreciado, sabe?”
Alternativas de conteúdo adulto ao Tumblr
Vale lembrar que assim que a decisão do Tumblr foi divulgada, o site pornográfico Pornhub abriu suas portas e não só convidou como incentivou artistas NSFW a entrarem na plataforma apenas para postarem seus desenhos. No entanto, a iniciativa não deu lá muito certo, não é à toa que não só Sula como muitos outros artistas ainda buscam fóruns e outras redes para expor sua arte. Na CCXP, Sula nem mesmo expõe a parte erótica dos seus desenhos, e diz ela ser pela responsabilidade do artista de reconhecer que existem muitos públicos por ali. Ou seja, cabe aos interessados a perguntarem mesmo.
Vale lembrar que a CCXP19 foi o primeiro, desde que os eventos começaram, a esgotar todos os ingressos. Nas outras edições, a feira estava mais vazia e era um pouco mais fácil procurar e olhar as artes com calma. Nessa, não. Era tanta gente que ficou impossível andar pelo Artist’s Alley sem se deparar com filas, engarrafamento e uma quase nula visão das mesas. Mas botei na minha cabeça que precisava de outro artista, que precisava encontrar pelo menos uma terceira opinião sobre como é expor esse tipo de arte em uma feira tão grande.
Kainã Lacerda
Foi então que, quase desistindo, achei ele, o Kainã Lacerda, que não só estava expondo arte erótica, mas também arte fetichista e muito bem explícita, devo dizer. Aliás, o que mais me chamou a atenção foram os títulos; “CINTARALHA: nesta edição – A Ascensão, o auge e a queda dos Bebe-Mijos”.
Gente do céu.
Logo eu, que lá no início do texto já estava achando que não ia encontrar nada, quase fiquei petrificada ao olhar para a mesa do Kainã. E foi justo ali que eu entendi que a CCXP é muito menos conservadora do que eu achava que era, e ainda bem!
Conversando um pouco com ele, perguntei primeiro o motivo de começar esse tipo de arte. E de onde vieram as ideias. “Não sei, cara! Antes mesmo de começar a fazer quadrinhos, eu fazia sketchbooks, eu fazia desenhos em rodapés… Então foi só questão de tempo até começar a fazer HQs de verdade.”
Finalmente corpos fora do padrão
E uma das coisas que eu só parei para pensar quando estava na mesa dele, foi que o Kainã foi um dos únicos, se não o único artista que encontrei que não focava em corpos padrão. Na arte dele há mulheres gordas, mulheres com pelos, mulheres de todos os tipos. Perguntei o porquê disso, e a resposta foi primorosa, como deve ser: “Eu nunca fui de mulher padrãozinho. Eu acho meio que não tem muita graça. É a mesma silhueta sempre, e eu acho chato. Eu gosto de desenhar pessoas que se parecem pessoas de verdade. Eu desenho estrias, celulites, eu gosto de gente que é gente, sabe?”
Além disso, ele me contou que a CCXP19 era o primeiro evento de grande magnitude que ele participava, e que pensou seriamente em fazer capas falsas para os seus quadrinhos. Consigo imaginar os motivos. “Eu pensei mesmo em redesenhar as capas. Mas aí fiquei com preguiça e vim assim mesmo. Ninguém me expulsou ainda, e eu estava esperando pelo pior, então por enquanto tá tudo ótimo!” Você pode encontrar o Kainã e suas comix em sua loja online.
Pois é, pra quem foi ao Artist’s Alley achando que não encontraria nada e que os artistas eróticos seriam jogados para escanteio, fiquei feliz em saber da boa recepção de todos. Todos os artistas que falaram comigo foram, além de simpáticos, mostrando a responsabilidade em suas obras e em suas mesas. Quando tinha criança perto, eles chamavam adultos para esconder um pouco as artes eróticas.
Vale lembrar que esses três ilustradores foram os que eu pude encontrar e conversar, mas que com certeza havia mais deles por ali – eu só não os achei, infelizmente. Entretanto, é bom saber que a CCXP possui espaço para todo tipo de arte.
A CCXP19 e o espaço para o erotismo
Para as feiras, está tudo bem. Se na maior feira geek (agora do mundo, né, CCXP?) ninguém ali é discriminado, já me deixa um pouco mais aliviada. Mas ainda falta um espaço digital que acolha essas pessoas, assim como falta uma rede social que acolha trabalhadores sexuais, já que o Instagram tem cada vez mais deletado as nossas contas. Mas isso é tema pra outro artigo, né?
Por falar em acolhimento, gostaríamos de convidar artistas que escrevem, ilustram ou fazem qualquer tipo de arte +18 para mandar seu material para a Xplastic (preferencialmente por email [email protected] ou pelo twitter @xplastic) porque adorarímos das voz e expor um pouco mais do trabalho de cada um de vocês. 18 artistas que fazem arte +18, que tal?
Ainda que o espaço seja um pouco pequeno para esse tipo de entretenimento, esse artigo aqui teve um final feliz.
Agradeço os artistas pelo tempo cedido às entrevistas e agradeço por terem sido simpáticos comigo, que sou sempre tão invasiva com as perguntas.
(Algumas das respostas foram levemente alteradas por questão de entendimento e/ou encaixe no contexto)