Stabat Mater, peça de Janaina Leite, me deixou tão impactada com certos assuntos que resolvi revisitar as ideias em alguns pontos. Aproveitando o mês de outubro e a chuva de filmes, livros e conteúdo temático de Halloween, me senti no direito (e talvez no dever) de apontar o modo como a sexualidade é explorada nesses espaços, especialmente em filmes de terror.
Nesse universo, é comum vermos duas atribuições principais ao sexo: uma para desqualificar mulheres e torná-las dignas de morte, outra para expor violência gráfica. Muitas vezes uma atribuição vem seguida da outra, mas há casos onde a violência gráfica sexual é usada como método de choque e desenvolvimento de trama, o que não torna as coisas muito melhores. Existem outros modos do sexo ser retratado, mas esses dois são os mais comuns.
“Nos Slasher Movies dos anos 80, existe a figura feminina ‘Final Girl’. Geralmente vê-se uma mulher correndo, ensanguentada, em uma estrada vazia, fugindo do monstro ou do assassino que à essa altura já matou todos os amigos dela, principalmente as amigas mais arrojadas, que fazem sexo e se drogam e morrem normalmente em meio a cenas de sexo, mutiladas, estripadas, desmembradas. Mas ela não. Ela não morre porque ela é virgem e moralmente superior a todas as outras garotas do filme.” (Janaina Leite como Palestrante em Stabat Mater)
Sexo nos filmes de terror – A Morte do Demônio
Até eu, que nunca fui muito fã de Slasher Movies, tenho aqui na cabeça memórias de uma lista de filmes e situações onde jovens mulheres morrem transando. Esse foi um ponto muito estereotipado principalmente da década de 70 ou 80, e deixo aqui uma menção honrosa e horrível ao filme A Morte do Demônio, de 1981, onde uma das protagonistas é estuprada pelos galhos de uma árvore.
Quando os personagens gostam de sexo, eles são desqualificados. Quando os personagens são estuprados em prol de um choque ao espectador, é a violência gráfica agindo. E A Morte do Demônio é um exemplo da junção dos dois.
Por sexo ser um tabu, em especial naquela época, os filmes de terror o usavam como desculpa para matar personagens a torto e a direito, principalmente mulheres jovens. A existência da Final Girl como virgem imaculada também evidencia o tabu. Afinal, “Final Girl” tem a tradução literal como “Garota Final”, ou seja, a sobrevivente. Muitas vezes, a única sobrevivente.
Existe até mesmo uma pesquisa científica encabeçada por Andrew Welsh, professor de criminologia da universidade Wilfrid Laurier, no Canadá, que explora a relação entre sexo e violência nos filmes de terror, e aponta que mulheres nessas obras sempre tem muito mais chances de morrer quando fazem sexo do que mulheres que não o fazem. Você pode ter acesso à pesquisa original, em inglês, clicando aqui.
O espectador e o conservadorismo
Filmes de terror (num geral, não apenas slashers) inclusive colocam o espectador numa proposital posição conservadora, nos induzindo a concordar com aquelas mortes que em si parecem meio esdrúxulas. “Morreu, ó. Bem feito! Quem mandou ir transar justo aí?”, “Que burros, eu jamais iria pra uma casa no meio do nada assim.”
Colocar os personagens em posições que façam quem está assistindo duvidar de sua inteligência gera a concordância com suas mortes. Afinal, num ponto de vista conservador, gente burra merece morrer. E é nesse ponto em que o espectador deixa de reagir àquela história com consciência, e passa a agir induzido pela ideia do filme de que aquelas pessoas fizeram algo para merecer seus fins.
Do outro lado temos a violência gráfica, que trata o sexo como instrumento de choque, desde usar estupros até criar cenas desconfortáveis de pedofilia e necrofilia.
O que faz um filme de terror ser “terror”?
Como escritora isso é algo que sempre assolou minha cabeça, e conforme fui entrando no meio literário comecei a perceber que existem nichos do terror. Existe o nicho descritivo (que podemos chamar de gráfico no caso de filmes), que se propõe a criar cenas de assassinatos, tripas, sangue aos montes. Gore. E existe o nicho menos descritivo mas tão terror quanto, geralmente com enfoque no lado psicológico. Também pode-se aplicar aos filmes. Para ser terror, não é preciso gastar vinte litros de sangue falso.
Histórias horríveis também precisam ser contadas, mas há uma diferença entre cenas que são necessárias para o andamento da trama e cenas que estão ali só para chocar o consumidor, seja ele espectador ou leitor, sem propósito algum além de gritar: “Olha! Olha como é pesado!”. Se a obra se sustenta nesse tipo de cena, ela não é uma boa obra de terror.
The Serbian Film
E para mim não há exemplo mais claro disso do que A Serbian Film, de 2010. Você com certeza já ouviu falar desse filme e não é por menos, ele é considerado até hoje um dos filmes mais perturbadores que existem. Foi banido em diversos países, incluindo no Brasil, e pelo menos aqui só foi liberado após um processo judicial. Na trama, Milos é um ex-ator pornô que, por conta da falta de dinheiro, resolve aceitar o convite de um diretor e antigo colega de trabalho para voltar à indústria. É uma ideia muito simples, chegando a beirar ao raso. Mas o que sustenta o filme são as cenas de necrofilia, pedofilia, estupro e excesso de violência.
O diretor chegou a falar uma vez que a escolha do personagem ser um ex-ator pornô não foi proposital e que Milos poderia ter qualquer emprego, que daria na mesma. Que a intenção dele era mostrar como as pessoas podem ser exploradas. Ai, homem. Sinceramente. Gostaria que esse artigo fosse em vídeo para que eu pudesse rolar os olhos.
Faz parecer que eu demonizo histórias sobre pessoas ruins, mas não. Eu até gosto muito de histórias sobre pessoas ruins. Mas acredito que, no audiovisual principalmente, deve existir uma linha contínua de acontecimentos que sejam necessários. E no caso de A Serbian Film, não vejo como o estupro de um bebê possa ser realmente necessário, ainda que no final isso seja um gancho para mais uma das perturbações do personagem.
Há ainda na viagem sobre sexo e terror, uma outra abordagem. O sexo como objetivo do vilão, seja ele o objetivo final ou como atrativo para as vítimas. E o mais curioso é que nesse tipo de trama, o vilão é, geralmente, uma mulher.
A mulher na indústria do terror
Os papéis da mulher na indústria do terror, em muitos estereótipos, são bem distintos. A Final Girl virgem. A mulher promíscua que morre transando ou prestes a transar. A vilã que atrai suas vítimas com sexo. E em todos esses estereótipos é possível ver a objetificação do corpo feminino, seja ele imaculado ou imundo.
Em A Experiência, filme de 1995 sobre uma espécie humanoide criada em laboratório e que sem querer escapa, a trama mostra o sexo como objetivo final. A espécie, que acaba se tornando uma mulher belíssima e desejada por onde quer que passe, está procurando um homem perfeito para procriar. O filme inteiro mostra como ela é perigosa e o que faz quando frustrada.
Ali há também diversas mortes durante o sexo, mas ao contrário dos filmes slasher onde jovens são mortas por psicopatas enquanto estão transando, as mortes em A Experiência são de homens que acabam sendo pintados como pobres coitados. Morreram porque não eram perfeitos.
Esse é um filme que minha mãe me fez assistir um dia e eu não tinha a menor ideia do quão famoso ele era. Quando assisti, achei que era só mais um filme de terror dos anos 90, sem muita fama. Mas em todas as pesquisas que fiz para escrever a esse artigo, A Experiência aparece como um dos grandes exemplos de sexo nos filmes de terror.
Os vilões e o sexo nos filmes de terror
Já o outro lado da abordagem pelos vilões, é o sexo como atrativo. Vilões sensuais e manipuladores que brincam com a cabeça de suas vítimas até que elas cedam aos seus encantos. Mesmo em filmes que não são do gênero, o sexo como atrativo dos vilões é algo muito usado, especialmente em ficção científica e fantasia, embora não de maneira tão descarada.
Um filme, que na minha opinião já é um clássico moderno, é Garota Infernal. Nele, a jovem Jennifer começa a assassinar garotos quando seu corpo é possuído por um demônio. Não só assassinar, como passa a se alimentar deles, usando sua carne para conseguir força vital e continuar bela.
Garota Infernal fez um alvoroço na época em que eu estava na escola, porque era mais um filme de terror com a jovem gostosinha que todos os caras queriam ver pelada. E embora ela fosse má, seu corpo era retratado como divino. E chego a dizer que era por isso e exclusivamente por isso que ninguém levou o filme como um terror sério. Foi taxado como um filme pornô livre para menores de idade que por acaso tinha umas cenas de matança ocasionais.
E quando o vilão não usa o sexo como atrativo e nem como objetivo final, ele o usa como artifício para o medo. Mais uma vez expondo corpos de mulheres à violência gráfica e explorando ele, um dos mais antigos medos femininos: o medo de ser estuprada. De todos os exemplos que dei, esse é o mais real. Não haverá monstro algum me perseguindo na floresta se por acaso eu decidir transar. Também não vou virar vítima de uma mulher demônio. Mas o medo de ser estuprada está aqui comigo, e estará comigo enquanto eu viver nessa sociedade.
Limites ou tudo está liberado?
Sei que o artigo fala sobre viagem pelo sexo nos filmes de terror, e que estupro não é sexo, é violência sexual. Ainda assim não pude deixar de citar como a indústria cinematográfica usa do estupro para mexer com a mente dos espectadores, às vezes ultrapassando alguns limites. Abro a discussão: um filme de terror precisa ter limites ou tudo pode ser liberado? Qual a linha tênue que separa um filme marcante de uma obra exagerada que marca pelo trauma?
Posso nomear dois filmes pontuais que giram em torno dessa temática: Doce Vingança (2011) e O Homem nas Trevas (2016). Enquanto o primeiro retrata a vingança de uma jovem em cima de seus estupradores, o segundo tem uma cena de possível estupro, cujos motivos são bem obscuros e fazem parte do plot twist do filme. Em O Homem nas Trevas, um grupo de jovens acaba preso em uma grande mansão habitada por um homem cego, e precisam lutar para escapar de lá. Ambos me deixaram bem desconfortável, e acredito que deixariam qualquer um desconfortável ao se colocar naquela situação. São muito reais. Bem mais reais do que eu gostaria.
Eles não apenas usam o estupro como violência gráfica, como em A Serbian Film, mas fazem com que a história seja desenrolada à partir desse medo. E a diferença da violência gráfica desses três é que, incrivelmente, Milos não é o vilão de A Serbian Film.
A consequência do sexo nos filmes de terror
Já passeamos por alguns dos temas existentes para o sexo nas tramas de terror, mas e a consequência do sexo?
Não é novidade para ninguém os filmes onde crianças e bebês são retratados como bestialidades, como filhos do demônio ou como o demônio em si. A figura da mulher, quando não é morta durante o sexo, sempre gera o Anticristo, de diversas formas.
Tomemos o já citado A Experiência. A personagem visa transar com um homem perfeito para gerar a prole perfeita e assim perpetuar a espécie. Eventualmente ela consegue, e o resultado disso é o verdadeiro motivo de espanto. Uma figura monstruosa provinda de seu ventre outrora humanoide.
O Bebê de Rosemary
Um dos filmes de terror mais conhecidos do mundo é O Bebê de Rosemary, que foi lançado em 1968. O que mais gosto nele é que em nenhum momento o rosto do bebê é mostrado, para deixar com que a imaginação de quem assiste trabalhe em prol do medo. Roman Polanski entrega um filme longo, repleto de cenas sobre a gravidez e ensaio sobre o que é a bestialidade em sua mais pura – e digo isso no melhor e pior sentido – forma. Bebês, que deveriam ser a forma de vida mais pura e ingênua do mundo, são transformados em verdadeiros monstros em muitos filmes, e não precisam nem mesmo aparecer para que isso seja feito.
O Bebê de Rosemary foi lançado em 1968 e conta a história de um casal que se muda para um novo prédio e faz amizade com pessoas no mínimo estranhas. Quando Rosemary engravida, essas pessoas passam a ter um estranho contato com ela. Revela-se então uma seita satânica e o desfecho óbvio: o bebê é o filho do Diabo.
Mia Farrow, atriz principal do filme, precisou emagrecer e teve seu rosto transformado, tomando uma aparência doente. A figura da mãe foi retratada como frágil, enquanto a criança se alimentava dela de dentro para fora, aparentemente. O Bebê de Rosemary é um terror mais psicológico do que gráfico, e usa o resultado do sexo como artifício para assustar ou, no mínimo, criar um desconforto.
Última reflexão sobre o sexo nos filmes de terror
Depois desse grande passeio sobre a sexualidade no mundo obscuro, deixo o questionamento: não está na hora de, talvez, as cenas de sexo serem exploradas de uma maneira diferente? Ou é justificável que o gênero use as cenas para assustar, porque, no fim das contas, é isso mesmo o que ele se propõe?
Não consigo decidir. Algo em mim clama por algo diferenciado. Todos os filmes citados neste artigo são de épocas e subgêneros diferentes, provando que, desde o surgimento do gênero até os dias atuais, as coisas não mudaram muito. E, com honestidade, não sei se podem mudar. Até o cenário atual não vi possibilidades de fugir de tais obviedades, mas tenho fé que os novos diretores que estão surgindo consigam ver cenas sexuais de uma maneira menos clichê que os anteriores. Não sei você, mas eu não aguento mais ver a jovem promíscua tendo a cabeça arrancada pelo monstro enquanto transa com o namorado.
À propósito, feliz Halloween!
Este artigo não necessariamente representa a opinião da Xplastic.