Antes que eu seja xingada por esse título, gostaria de deixar claro que eu amei Euphoria.
Estava vagando pela internet de madrugada e me peguei num post no facebook em que a pessoa classificava a série como “uma Skins que não te faz ter vontade de usar drogas”. Sou da geração que cresceu assistindo Skins, que queria ser Effy Stonem e que, de maneira infantil, achava que a adolescência era assim mesmo. Ledo engano. Na mesma noite, dei play no primeiro episódio de Euphoria, série recente da HBO.
Os primeiros minutos me deixaram nervosa. Rue, personagem principal interpretada por Zendaya, é extremamente parecida comigo no quesito desordem neurológica. Daí em diante eu soube que Euphoria seria mais uma dessas experiências onde um episódio de cinquenta minutos acaba demorando três horas para ser assistido. Porque eu preciso fazer muitas pausas.
Euphoria é uma série adolescente, nem tão adolescente assim. Ao meu ver, temas como drogas, sexualidade e relacionamentos são tratados de modo muito mais sério do que as séries adolescentes mais comuns. Há uma boa representatividade e uma gama grande de personagens que transitam entre o original e os clichês.
Uma das coisas que mais gostei na série é a personagem Jules, que é uma garota trans. Logo de cara você percebe que ela é trans, sem o programa apresentá-la assim, ou sem precisar de uma cena horrível sobre aceitação ou com algum familiar a humilhando. Jules é muito doce, no sentido emocional e literal, uma vez que suas roupas e sua maquiagem a fazem parecer um cupcake. É uma personagem com angústias e desejos que não se apoiam no fato de ela ser trans. E acho importante dizer de qualquer forma que a HBO está de parabéns por dar à comunidade LGBT algo tão delicado e uma personagem tão bem construída. Eu estava me cansando de cenas introdutórias sobre como ser LGBT acaba se tornando uma penitência.
Acontece que este artigo não é uma resenha sobre Euphoria. Não vou entrar em detalhes sobre o relacionamento entre Rue e Jules, ou sobre como a série se desenrola em acontecimentos que transformam personagens doces em amargos. Ou não vou entrar em detalhes sobre como a série passa longe de retratar uma adolescência comum, beirando até à objetificação. Não vou dizer, por exemplo, que há cenas bruscas demais, ou que a HBO se preocupou em nos dar interações maciças de personagens desenvolvidos e se esqueceu que sua série se tratava de uma série adolescente. Eu não vim aqui falar sobre como é bizarro que, ainda que você ame um personagem, você também consiga odiá-lo na mesma intensidade, seja por suas ações ou por visões de terceiros. Eu não vim aqui dar uma nota. Não é esse tipo de artigo.
Se fosse um artigo de resenha, estaria meses atrasado, já que a série terminou de exibir sua primeira temporada há alguns meses. Não, este artigo é uma crítica ao que eu considero um dos únicos, se não o único, defeito realmente grotesco do programa da HBO.
Contém spoilers leves sobre desenvolvimento de personagem
Logo nos primeiros episódios somos apresentados a Kat, uma jovem gorda, a única virgem do seu grupo de amigas, que usa óculos, sofre bullying. Mas apesar disso tudo na vida real, Kat é famosa na internet e possui uma legião de fãs que a seguem pelas histórias eróticas que escreve. Talvez eu tenha me visto muito nela, e nossa única diferença é o fato de eu não ser uma mulher gorda.
Kat perde sua virgindade em uma festa, e sem que ela saiba, o momento é filmado e colocado no Pornhub, onde rapidamente ganha notoriedade e a escola inteira fica sabendo. Como o vídeo não mostra seu rosto, ela usa desse artifício para escapar dos boatos, mostrando uma esperteza difícil de não admirar.
Curiosa, ela entra no Pornhub para assistir ao vídeo e se depara com uma cachoeira de comentários elogiando seu corpo, sua performance. Conforme os episódios avançam, vamos entendendo que Kat tem sérios problemas com sua autoestima, em especial por conta do ganho de peso durante a infância, então eu diria que se sentir empoderada com pessoas elogiando sua primeira vez no sexo é nada além do que o esperado.
Vários dos comentários no vídeo perguntavam sobre perfis externos da jovem, de onde ela era, se havia mais vídeos como aquele. E então Kat cria sua própria conta no Pornhub.
E foi ali que eu entendi que me identificar com ela ia vir de qualquer forma, não importa qual o passado da personagem. Ali marca o nascimento de uma camgirl. E admito que as cenas são bem bonitas, bem filmadas. Me senti em casa.
Durante seu primeiro show no Skype, Kat é apresentada para o mundo do BDSM, dos escravos e das dominatrix. Além disso, a cena se concentra em um tipo bem específico de humilhação, que se você não assistiu, não vale à pena eu estragar sua experiência. Gostei do fato de ser algo recorrente, de ser real. Pelo menos na minha própria experiência como camgirl, eu encontrei uma realidade descrita ali.
Disso em diante, a trama avança para uma Kat transformando sua autoestima, descobrindo sua sexualidade e o que seu corpo pode fazer, além de, claro, reformar seu próprio visual para algo mais fetichista e também confiante.
O meu problema com Euphoria começou quando — tardiamente, admito — percebi o que estava na minha cara o tempo todo: Kat é menor de idade.
Na hora fui até o Google procurar críticas sobre o assunto e não encontrei uma, qualquer uma que fosse. As críticas que encontrei foram sobre como as cenas de sexo de Euphoria podem ser chocantes para um público mais adolescente, e sobre a forma como foram gravadas. Quase uma fetichização para adultos, o que eu concordo. Afinal, não podemos nos esquecer que a HBO não é conhecida pelo seu público adolescente, e sim pelo público adulto, com séries mais maduras, e é óbvio que Euphoria chegou primeiro nesse público. Encontrei vários artigos sobre as cenas de sexo, na verdade, mas nada sobre a problemática de ter uma personagem menor de idade sendo camgirl.
Sendo muito honesta, acho absurdo e talvez até um pouco irônico, que eu, uma camgirl e modelo erótica, esteja escrevendo sobre como isso é ruim, sendo postada em um site de uma produtora pornográfica. Pelos olhos do senso comum, o mundo deve estar de cabeça para baixo.
Seria muito inocente da minha parte achar que não existem menores de idade no mundo do camming. Existem, e eu sei que existem, e eu mesma já vi alguns. Essas pessoas trabalham por conta própria, e assim como Kat, fazem shows no Skype e vendem conteúdo fora de qualquer plataforma. Sites como MyFreeCams, Chaturbate, Cam4 e o brasileiro Câmera Privê pedem uma extensa quantidade de documentos e fotos e são bem equipados contra fraudes e falsidades. Em um site sério, não tem como um menor de idade entrar fácil assim.
Até mesmo o Pornhub, porta de entrada para a personagem nesse universo, pede esses mesmos documentos para perfis verificados. Imagino que a série não tenha entrado muito nisso por questões práticas, e eu gostaria muito de saber o que a plataforma pensa sobre a forma que o registro foi retratado.
Eu já tive meus documentos negados pelo Pornhub porque eles acharam que o scan da minha certidão de nascimento estava torto.
Um dos argumentos mais usados pelos militantes da anti-pornografia é que camgirls são menores de idade coagidas pela mídia. De fato existem, mas não são essa maioria, e definitivamente não é tão simples assim virar uma camgirl, não tão simples quanto Euphoria faz parecer. É problemático que uma emissora tão grande quanto a HBO acabe contribuindo para esses argumentos, porque só quem está dentro da pornografia sabe o quão burocráticas as coisas são.
Por mais incrível que a trama de aceitação do próprio corpo e aumento da autoestima de Kat seja, nenhuma camgirl gostaria de ser retratada de forma tão irresponsável. E de fato, seria de muito mais utilidade para a HBO mostrar as consequências e o que acontece com a mente de uma adolescente que se mete nesse mundo antes da hora, mas Euphoria faz o contrário: mostra Kat crescendo nisso, mostra sua evolução e seu mais recente empoderamento.
A série nos faz amar Kat como camgirl e como dominadora, e eu achei isso horrível.
O que mais me dói nessa história toda é que ela é de longe uma das melhores e mais bem desenvolvidas personagens, e que assim como Jules, as pessoas gordas precisavam de uma representante que não fosse a amiga engraçada da protagonista. Barbie Ferreira, atriz que interpreta Kat, disse numa entrevista que tinha medo de acabar pegando apenas papéis da “gordinha feia” e que temia ter de emagrecer para que as pessoas a levassem à sério. Eu acho importante e belo que haja uma personagem tão forte quanto Kat, mas também acho uma pena que a HBO tenha errado tão feio em naturalizar o trabalho sexual feito por menores de idade dessa forma.
Euphoria já foi renovada para uma segunda temporada, e quem sabe até o ano que vem a HBO arranje um jeito de consertar esse erro grotesco, apesar de eu ter minhas dúvidas da possibilidade.
Este artigo não necessariamente representa a opinião da Xplastic.