Neste episódio Nicole Puzzi entrevista Fernanda Kawani e Guttervil, que são artistas e empresários. No episódio 11 da sexta temporada de Pornolândia eles conversam sobre gênero, identificação, preconceito contra trans, tranformação e empreendedorismo. Uma conversa fluida que você poderá ler na transcrição a seguir, ou assistir diretamente no Canal Brasil na Globoplay.
Nicole Puzzi: Segundo pesquisas do maior site pornô do mundo, o Brasil é um dos campeões na busca por pornografia envolvendo pessoas trans. Ao mesmo tempo, somos tristemente o país que mais mata transexuais no mundo! Hoje vamos conversar com Fernanda Kawani e Guttervil que vão nos contar tudo sobre como é ser uma pessoa trans no Brasil. E depois, vamos ficar com a nossa saborosa Xgirl.
A história de uma transformação
Conta um pouco sobre a história de cada um de vocês até a transição.
Fernanda Kawani: Oi, meu ome é Fernanda Kauani Custódio, sou uma mulher trans. tenho 29 anos, sou natural de São Caetano do Sul, fui criada no interior, em Araraquara onde fiz minha graduação em estética e cosmética. Só que nesse processo de graduação eu me descobri uma mulher trans e, por isso, durante seis anos, eu não consegui emprego. Então, nesse processo da minha descoberta como mulher e já formada em estética, eu viajei por todo o país em busca de um lugar onde eu fosse mais aceita. Então, em 2016 eu vim para São Paulo e conheci o meu sócio Guttervil. Juntos nós criamos a Translúdica, a primeira loja de representatividade comercial feita por pessoas trans do Brasil.
Guttervil: Eu sou o Guttervil, sou uma pessoa agênero e tenho 40 anos. A minha fase de transição ainda está acontecendo. Na verdade, a fase de transição dura para a vida toda, mas a minha é muito recente. Isso porque até os meus 37 anos eu me considerava/ me assumia como lésbica. Até eu ter a Fernanda na minha vida, que foi me mostrando outras formas de ser, outros corpos. E aí eu fui me identificando com outros corpos, até eu chegar nesta questão de que eu sou uma pessoa agênera.
NP: Antes de perguntar sobre esses significados…
Fernanda Kawani: É complexo…
O relacionamento
NP: É complexo. Eu quero saber qual é o relacionamento entre vocês!
FK: Bom, a gente foi casado durantes três anos. Hoje a gente tem um relacionamento extraconjugal, vamos dizer assim. A gente se conheceu e, em menos de um mês, a gente já estava morando junto. Eu já tinha experiência com outras mulheres. Primeiro eu me descobri uma mulher transexual e depois eu descobria a minha sexualidade aos 23. E esse processo foi muito louco, porque quando eu descobri que também gostava de mulher, eu falei “ah, pronto, vou ter que tirar o peito, voltar a ser homem. Eu gosto, eai?”. Isso até o momento em que eu descobri que eu posso ser uma mulher trans e ser homossexual.
Foi aí que eu conheci Guttervil, mas já tive outros relacionamentos antes dele. Só que na época, ele ainda se identificava como mulher. Mas, quem tem experiência já olha e já fala “tem algo de errado aí, mulher você não é”. E ele se negava, porque é um processo de identificação dele com a sua essência, né. E durante o nosso relacionamento, Guttervil passou a ter questões com o próprio corpo. Foi ai, então, que ele passou a se identificar como agênero.
A própria descoberta
Gu: Na verdade, eu nem sabia muito bem o que era ser um agênero, porque a Fernanda sempre falava que eu era um homem trans. E eu falava que não era, porque eu não me identificava, eu não tinha uma disforia com meu corpo. Quer dizer, eu tenho uma disforia com meu corpo, mas é estético, o que é natural de qualquer pessoa, porque eu acabei engordando bastante. Mas, não tive problema com os meus seios, com a minha genitália. Aí, eu fui começar a questionar as coisas junto com a Fernanda, conversava aqui, conversava lá. Aí, eu fui estudando, fui indo atrás de algumas coisas e eu vi que, realmente, essa é a minha posição no mundo, e eu estou aqui para isso. Eu sou uma pessoa agênero.
NP: Agora, para a gente entender, porque eu também demorei para entender. Eu sou muito amiga dos dois, já brigamos…
Entendendo os termos
FK:Já trabalhamos juntas… Já brigamos… Comigo não, com o Guttervil!
Gu: Ah, sempre é comigo, né! Mas, tudo bem. A gente é taurina e se entende.
Agênero
NP: É verdade. Gosto demais dos dois, eu adoro. Agora, para que todo mundo entenda, porque eu não entendia essas denominações: O que é cis, o que é trans, o que é agênero?
Gu: Agênero é quem não se identifica nem como homem e nem como mulher. Ele é um gênero neutro.
NP: Você?
Gu: Eu, agênero. Às vezes, as pessoas falam que é o terceiro gênero, mas eu não acredito muito nisso. Eu não me vejo… Porque, a maioria das pessoas olha para você e te define pela sua genitália. Assim, me desculpem, gente, mas você não vão conseguir me definir. Eu me olho no espelho e vejo um borrão, nem vagina e nem pênis. Eu sou um ser! Uma pessoa que anda, que vive, que come. E eu não me identifico nem como homem e nem como mulher.
Cis e trans
NP: E pessoas trans e pessoas cis?
FK: A palavra trans vem do latim que significa “do outro lado” e a palavra cis é “do mesmo lado”. Então, você, Nicole Puzzi, nasceu mulher biológicamente e se identifica como mulher. Então, você é uma mulher cisgênera. Eu, Fernanda, nasci em um corpo biológico de homem e me entendo como mulher, sou transgênera.
A população LGBT e o envelhecimento
NP: Está havendo um envelhecimento da população LGBT no Brasil. Como você pensam sobre esse assunto?
FK: Envelhecimento da população LGB. T não, porque o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. A expectativa de vida de uma pessoa Trans no Brasil é de 35 anos. Então, meu amor, quem envelhece com 35 anos? Infelizmente. Então, para termos uma qualidade de vida para o envelhecimento a gente precisa de trabalho, educação, saúde.
E se a gente fala de uma população que é marginalizada que é o T… Por isso que essa sigla LGBT não me contempla! Porque, é um movimento que só faz movimento para os gays. A gente vê os gays que tem uma passabilidade… Porque, até você entender a sexualidade da pessoa, ela precisa manifestar. Eu como travesti, a minha presença não tem como ser negada, não tem como enrustir a minha identidade de gênero. Então, estou falando de um movimento que é marginalizado dentro do próprio meio. Os próprios homossexuais, tanto masculinos como femininos, marginalizam, não dão empregos. Muito pelo contrário, muitas vezes, incentivam de certa forma esse preconceito, porque dentro de seu privilégio como homossexual, ele se blinda. Mas, identidade de gênero não se nega.
A questão do trabalho para pessoas trans
NP: Como é não ser cis, não ser cis hétero, vamos dizer assim e conseguir um trabalho?
FK: Olha, as pessoas trans… 90% das travestis veem na prostituição a única forma de sobrevivência até hoje. A gente fala de 90% de uma população que ainda está na prostituição. Não que não seja um trabalho, mas não é uma profissão. Hoje, a Translúdica, que é a nossa empresa colaborativa, ela reivindica a empregabilidade, bem como o empreendedorismo trans. Se a gente pensa nessa população que não é incentivada a estudar, com evasão escolar… Eu ressignifico essa frase, porque não tem uma evasão, nos evadiram. Porque, nós somos expulsos dos espaços, então a gente traz essa reivindicação de empregabilidade, dar emprego para essas pessoas que historicamente foram excluídas deste sistema que é opressor, que é transfóbico.
Transludica
NP: Vamos falar do trabalho de vocês atual, vamos aproveitar a Translúdica. Falem um pouco do trabalho de você atual e o que vocês pretendem para o futuro.
FK: Ao lado do meu sócio Guttervil, a gente fundou a plataforma Translúdica, que é a primeira plataforma comercial feita por pessoas trans do brasil. Através de uma loja colaborativa, a gente reúne produtos em diversos segmentos feitos por pessoas trans empreendedoras como nós. E a gente ressignifica as falas que estão lá dentro. São produtos vaginais, por exemplo, e tava escrito na embalagem “produtos para mulher” e aí eu falei “olha, um homem trans pode ser comtemplado com esse produto” e essa proposta a gente pode levar para a empresa. Você ressignifica, porque não precisa mudar o produto, é só mudar as embalagens para que contemple, cada vez mais, mais público.
NP: Porque, não existe só homem e mulher.
FK: Um produto peniano não é só para homem ou mulher trans, é um produto peniano. Serve para todos. Eu não me sinto contemplada comprando um produto peniano com a embalagem escrito men. o que custa o mercado, hoje, no século XXI, colocar um produto peniano escrito girl, woman?
Encontre Fernanda e Guttervil
NP: As pessoas que querem entrar em contato com vocês, como é que faz? Instagram…
FK: A gente tem o Instagram da loja que é @lojatransludica. A gente tem um e-comerce também que é lojatransludica.com e tem o Facebook Loja Translúdica também. E, se você é uma pessoa trans e quer participar de um projeto com a gente, vende ou revende algum produto a gente oferece na plataforma como se fosse um marketplace físico. Então, ao mesmo tempo que você encontra um produto que você tanto necessita, você pode revender o seu produto também.
NP: Olha, que prazer conversar com vocês!
Gu: Magina, obrigado você!
FK: Obrigada pelo convite. E que muitas pessoas cisgêneras e transgêneras que assistiram o programa se sintam contempladas e entendam um pouco mais sobre a causa.
NP: Beleza!!! Obrigada, gente!
E agora nós vamos para a nossa lindíssima Xgirl!
A nossa Xgirl
E o programa terminou com a maravilhosa Xgirl Bru Segovia, uma morena de corpo tatuado que traz a beleza de ser ela mesma!