Para saber o que pensam os homens que se vestem de mulher, entrevistei crossdressers casadas com mulheres, a cartunista transgênera Laerte Coutinho, uma cross que só se monta por fetiche, outra que só gosta de homens e até um cara que é fissurado por elas
Priscila e sua rainha
Fui recebida pela esposa da crossdresser Priscila com um copo de cerveja gelada e muita vontade de me contar todas as aventuras de seu casamento. Priscila é o nome pelo qual Domme V. batizou Martins, o lado crossdresser de seu atual marido. “Quando se monta, ela é exibicionista, divertida e fútil, não tem as neuroses do Martins. Somos amigas, transamos e ela obedece tudo o que eu mando”, revela Domme.
Como o nome sugere, a esposa de Martins é uma mulher adepta da dominação, principalmente psicológica, e às vezes leva amigas para casa, estimulando que elas interajam com a versão feminina dele: “eu já até tentei introduzir no sexo, mas elas ficam apavoradas. Trouxemos uma menina super moderninha aqui, mas ela travou, não conseguiu nem dar uma mordida inocente na bunda da Priscila quando eu pedi”.
“Um grande tesão que eu tenho é ver essa cara de espanto que você fez quando me viu”, me disse Martins, já montado (ou montada). Quando apareceu na sala, altíssima no salto, com um vestido preto, toda gostosona, eu não consegui acreditar que aquela mulher era a mesma pessoa de aparência masculina que eu havia visto em fotos. Nos dias normais, ele é sócio de uma empresa e não pode sequer cogitar se assumir para familiares e a maior parte dos conhecidos, mas se trasveste em casa todos os finais de semana. Isso porque o casal mora com os pais dele, senão a frequência seria ainda maior…
Comentários humilhantes, como “nossa, quanta celulite”, “esse vestido está super cafona”, ou “a Priscila é muito burra”, são parte do teatro sexual que faz o casal ir ao delírio. Sem pudores, Martins conta tudo: “geralmente, fazemos sexo olhando minhas fotos como Priscila. Ela me humilha com coisas do tipo ‘olha o que eu te obrigo a fazer’, me manda falar para os outros ‘minha rainha me obriga a comê-la’ e eu tenho muito tesão nisso. Quase sempre nós transamos quando eu estou montado, mas dificilmente eu gozo assim, tenho que tirar alguns acessórios para ter orgasmo. E na hora que eu gozo, eu não suporto mais me olhar no espelho como mulher”.
Eu e a fotógrafa Les Chux, que estava ali para fazer o ensaio fotográfico da Priscila, presenciamos esse jogo sexual de poder que rola entre o casal. Muitas vezes, Domme V. respondia minhas perguntas no lugar de Priscila e interferia bastante nas poses das fotos. No entanto, no dia a dia, o casal garante que a dominação e a submissão não estão muito presentes. Ela explica: “eu não sou uma dominadora psicótica, não interfiro nas questões pessoais do Martins. Mas mesmo que eu esteja de pijama, se for em um contexto mais sexual, ele ou ela vão ter que me obedecer”.
As primeiras lembranças que Martins tem de ser uma crossdresser não são muito claras, porque aos 15 anos ele sofreu um acidente e ficou cinco dias em coma: “algumas coisas se aparagam da minha memória, tenho só flashes da infância, mas lembro da filha da empregada me vestindo com roupas de menina e me maquiando quando eu tinha cinco anos de idade. Tive experiências homossexuais com dez e 12 anos com um vizinho, mas depois nunca mais, hoje sou hétero. Comecei a vestir roupas da minha mãe e depois, na adolescência, também fui desenvolvendo meu lado submisso”.
As namoradas dele “meio que aceitavam”; os relacionamentos de Martins afundavam quando as mulheres viam a frequência com que ele gostava de ser a Priscila e que o tesão dele era sempre transar como mulher. Domme V. foi a companheira perfeita, porque sempre esteve aberta a novos fetiches e porque, claro, rolou um amor forte entre eles.
Expressões
Eliane Kogut, psicóloga que fez uma tese de doutorado sobre crossdressers, não encontrou durante sua pesquisa nenhuma CD (abreviação popularmente usada) que gostasse exclusivamente de homens. Em boa parte eram homens casados com mulheres, que curtem se vestir de mulher e interagir sexualmente como tal, mas não pretendem ir a público travestidos. Apesar disso, quando Eliane perguntou para as CDs o que fariam caso pudessem viver como mulheres em uma sociedade livre de opressões, muitas afirmaram desejar viver sempre vestidas de mulher e que se envolveriam ainda mais em atividades femininas.
Essa pesquisa pode levantar a seguinte questão: seria o crossdressing uma forma de expressão construída pelas barreiras sociais? Aquilo o que as cross fazem esporadicamente entre quatro paredes poderia ser feito publicamente e com maior frequência, se não fosse o preconceito em ambientes familiares, de trabalho, entre amigos e na rua? Respostas que só podem ser dadas individualmente pelas crossdressers e que fazem parte dos objetivos da minha matéria.
Comecei a me questionar os porquês de eu nunca ter desejado me vestir como homem e a resposta estava no meu armário: eu tenho coturnos, camisas, calças largas, calcinhas estilo cuequinha, posso usar jóias masculinas, posso ter tatuagens meio “de macho” e ninguém vai me encher o saco. Mas basta um homem sair na rua de saia, OU com uma bolsa feminina, OU um item de maquiagem na cara que, pronto: “VIADINHO!” Não quer ser viril? “BAITOLA!” Imaginei-me como um homem e pude enxergar que tenho bem mais liberdade para usar roupas e adornos sem me chamarem de “caminhoneira” por aí.
Talvez, só talvez, isso aconteça porque o time feminino é perdedor desde que o mundo é mundo. Na maioria absoluta das sociedades, os homens têm mais poder e sempre usaram e abusaram dele. Então, cara, como assim você quer usar o uniforme delas? Esse batom te torna mau sujeito, essa voz fina te deixa frágil, essa perna depilada te garante que você vai experimentar o gosto que o machismo tem.
Laerte, cartunista trans
Laerte veio à público como crossdresser há alguns anos e, mesmo com o peso de ser uma cartunista famosa, não liga de ser entrevistada sobre o assunto. Atualmente, ela se vê como uma mulher transgênera e não como cross. Numa breve conversa, me explicou que a transgeneridade é um conceito mais amplo que o crossdressing e que serve para dar conta de todas as formas de inconformidade com o padrão bi-gênero, ou seja, a divisão entre homem-mulher condicionada ao sexo biológico da pessoa.
“No Brasil, o crossdressing se trata de uma manifestação da travestilidade com frequente duplicidade de expressão e manifestação clandestina. É algo mais típico de pessoas de classe média, que têm um preconceito bastante frequente em relação a travestis – vistas, sob esse olhar, como pessoas ligadas à prostituição. No entanto, o que o crossdressing exprime é, na essência, a mesma inconformidade em relação aos padrões de gênero de nossa cultura; quer dizer, são ambas formas de transgeneridade”, diz Laerte.
Ela conseguiu chegar a essa conclusão e “ter um entendimento mais amplo do que estava se passando” a partir de discussões dentro do Brazilian Crossdresser Club, associação que orientava as CDs brasileiras na época. Desde então, a palavra crossdresser já não contempla a cartunista. Laerte conta que tinha uma confusão sobre como expressar seu gênero e sua orientação sexual até o momento em que começou a se colocar como mulher.
E mesmo que muita gente pense que termos como “crossdresser” e “transgênero” sejam definições limitantes, que não permitem uma fluidez, eles têm sim sua importância para Laerte: “as identidades têm um papel importante no fortalecimento e desenvolvimento da própria expressão, uma vez que geram culturas grupais que podem fornecer segurança e força política a quem delas participa. Mas é verdade que também se constituem em novas normas, novos padrões, que geram novos conflitos, sem resolver a questão de base. Acho que hoje ainda é muito forte a presença de modelos de comportamento, para que consigamos navegar com liberdade, mas acho que é o caminho desejável”.
Como horizonte futuro, ela até cogita possíveis mudanças: “acho que a expressão transgênera pode ter muitíssimas formas e que o modo como a vivo hoje pode se transformar. Mas algo como a transgeneridade não ‘flui’ para a inexistência, a não ser como uma atitude de negação”.
Julia, crossdresser fetichista
Para Julia, o ato de se vestir de mulher é apenas parte de um fetiche; algo que tem sua importância na identidade sexual, mas não está nas bases da sua expresão de gênero. Diz ela: “eu não me sinto dividido ou em dúvida quanto à minha sexualidade. Sou um homem que tem um fetiche um pouco diferente apenas, mas fora dele, vivo normalmente”.
Ao contrário da maioria das crossdressers, que têm lembranças da infância e juventude relacionadas à vontade de se montar, Julia manifestou isso tarde: “foi bem diferente das crossdressers que conheço, aconteceu quando li um conto erótico sobre inversão de papeis e crossdressing, duas coisas que me deixam cheio de tesão. Eu tinha uns 35 anos e já era casado.
Conversei com a minha esposa, fui inserindo o assunto devagar e com calma. No início ela até curtiu a ideia, mas quando me viu completamente montada, disse que não gostou. Fiquei triste por não poder compartilhar esse pedaço da minha vida com ela”.
Para satisfazer seu enorme desejo, Julia conta que já cogitou dar uma “escapada” da heterossexualidade, porque acha mais fácil encontrar homens que gostem de CDs do que mulheres: “na verdade falta coragem para transar com um homem. O mesmo vale para travestis, pois apesar de curiosidade, nunca rolou”.
Para entender outras diferentes formas de crossdressing, entrevistei mais três CDs e também um homem que curte muito estar com elas:
Alice, se sua esposa soubesse…
“Eu tinha um 13 anos quando percebi que gostava de me vestir de menina, quando coloquei a minha primeira calcinha e gostei muito de me ver no espelho. Até hoje ninguém da minha familia sabe que tenho esse outro lado. Minha esposa, se soubesse, me mataria!
Tenho um grande fetiche de sair montada na rua e de ir em um lugar que eu pudesse ficar de cinta-liga, me mostrando para muitos homens para ver o que eles fariam, mas isso eu ainda não tenho coragem de fazer”.
Luanna, você nunca vai sair assim, né?
“A primeira lembrança é de quando eu tinha 13 anos de idade, no interior de Pernambuco. Um dia minha tia chegou em casa, falando que tinha visto um travesti na rua e me perguntou: você nunca vai ser assim né, sobrinho? Aquilo atiçou minha curiosidade, certo dia fui no varal da vizinha peguei uma calcinha e usei; aquilo me deu muito tesão! Até hoje apenas minha mãe sabe que me visto de mulher, ela entendeu, até foi comigo comprar as minhas primeiras roupas…
Me relaciono com homens, mulheres e outras cross. Tive poucas experiências sexuais com mulheres, mas gostei. Minha filosofia de vida é assim: ‘o importante é gozar’. Eu não tomo hormônios, mas talvez no futuro eu mude de ideia, hoje não”.
Rafaella, só para homens
“Eu tinha uns 12 anos, foi numa brincadeira das meninas da minha sala de aula. Durante um trabalho na casa de uma delas, de tanto elas dizerem que eu parecia mulher, acabei cedendo à pressão e deixei elas me montarem. Mas só comecei a sair vestida de menina com uns 15, 16 anos mesmo. Minha familia não sabe, só primos e primas em quem tenho mais confiança e uns amigos próximos.
Por mais que eu seja um menino bem afeminado e delicado, saio na rua como um menino. E eu gosto de homem mesmo… Mulher, CDs e travestis, só amizade”.
Renato, casado e apaixonado pelas cross
“Eu sou casado com uma mulher, mas não consigo deixar de ter relações com CDs e travestis. É o que me satisfaz de forma plena, mas não assumo publicamente. Bem que eu gostaria, mas a sociedade é hipócrita e eu certamente perderia clientes, pois sou profissional liberal num meio onde todos muito tradicionais e conservadores.
Eu sou ativo, mas a sensação de estar com uma mulher com pênis é fantástica
Tenho 50 anos e me relaciono com cross e travestis desde os 30. Encontrado geralmente CDs que gostam de homens, ou são bissexuais.
Já tive experiências maravilhosas, numa delas eu fiz um ménage com uma mulher e uma CDzinha, os três enlouqueceram de tesão! Uma travesti, inclusive, bem mais nova que eu, foi minha namoradinha por quase dez anos. Era uma relação intensa, carinhosa e de muita entrega e prazer, mas sempre em paralelo ao meu casamento tradicional”.