Bofinhas e homens trans não são a mesma coisa. Para deixar isso bem claro, entrevistei militantes, uma dupla sertaneja e até fiz um rolê vestida como uma bofinha
Sapatona, sapa, caminhoneira e bofinha. Alguns dos termos antes usados para ofender mulheres lésbicas masculinizadas ou os homens trans, foram sendo incorporados por elas e eles, e hoje até representam a identidade de algumas pessoas. É só buscar no Facebook para encontrar diversos grupos sobre o assunto.
São mulheres homossexuais que vestiram a carapuça, para que a ofensa do opressor se tornasse arma política. Eu, por uma noite, me vesti de bofinha e dei um passeio de mãos dadas com um homem e depois com uma mulher, para ver como as pessoas nos encaravam. Meu relato está no último tópico desta matéria.
Outra parte das lésbicas masculinizadas e dos homens trans, no entanto, não se sente debaixo do guarda-chuva que esses termos oferecem, a exemplo do homem trans Jackson Tyller: “eu não gosto da palavra bofinho. Acho grosseiro, não me representa e penso que não é o termo que se encaixa a um trans homem. Existem sim homens trans que não querem fazer todas as cirurgias, mas isso não nos faz menos homens” (Buck Angel, quem nunca?).
Apesar de serem muitas as possibilidades de identidades gênero e orientação sexual, as mulheres masculinizadas são frequentemente colocadas no mesmo balaio dos homens trans. O debate “travesti ou trans?” está muito mais na boca do povo do que “mulher masculinizada ou homem trans?”. Diferenciar, nesse caso, não deve servir para fiscalizar o que cada um tem no meio das pernas ou faz entre quatro paredes, mas sim para aumentar os debates sobre representatividade, diversidade e performatividade de gênero.
Quando você teve vontade de ser cis?
Cisgêneros são todos os que se identificam com o mesmo gênero do nascimento, ou seja, pessoas não-trans. Uma lésbica bofinha é uma mulher cis, porque, apesar do estilo masculino, ela ainda se sente bem no corpo de mulher. Já um trans, seja homem ou mulher, nasceu com o “corpo errado”. E provavelmente passará a vida ouvindo a pergunta em negrito acima deste parágrafo, com a palavra trans no lugar de cis. Mas você, pessoa cis, já imaginou que saco seria ter que responder quando você escolheu ser desta forma? Isso porque devemos pensar que não é exatamente uma escolha…
O relato de Jackson ajuda a entender que escolha de gênero ou opção sexual são expressões bastante imprecisas. “Ninguém tem vontade de ser trans. No mundo da transexualidade, nós nos descobrimos trans. Só notei mesmo que havia algo errado comigo quando eu estava na pré-escola. Era um dia de muito calor e a professora disse que as meninas podiam fazer um lacinho com a blusa e os meninos podiam pôr a camisa a trás da cabeça, deixando o peito todo exposto. E eu queria colocar a blusa por trás da cabeça… Foi ali que eu passei pelo primeiro constrangimento. A professora me chamou a atenção, dizendo que eu era menina e tinha que fazer o lacinho”.
“Mesmo na inocência de criança, me sentia um garoto e não entendia porque me tratavam como uma menina” – Jackson
A transexualidade masculina é tabu. Tanto que Jackson passou anos sem saber que aquilo o que ele sempre foi existia para o mundo com esse nome. “Só descobri o que era transexualidade há dois anos e foi aí que me encontrei. Anos antes, quando me assumi para minha mãe, ela me levou a uma psicóloga, achando que isso ia me curar. Soube que a psicóloga estava de complô com a minha família, contando tudo a eles o que eu revelava na sessão, sendo que ela me dizia ser confidencial. Até um dia que ouvi uma conversa da minha família de que iriam me internar. Então fugi de casa, passei quase dez anos fora. Percebi que eu não era uma pessoa estranha, pois até então não me encaixava em nada, até entender que eu sou um homem, mas estava no corpo errado e que eu poderia fazer tratamento pra consertar isso”.
Tratamento pelo SUS
A falta de informações sobre a existência do tratamento hormonal através do SUS e de como ele acontece é outro grande empecilho para os homens trans que querem dar esse passo. “Eu fiquei sabendo que eu poderia fazer o tratamento hormonal só três meses antes de eu começar. Eu já tinha visto algo relacionado em um programa americano, mas não tinha entendido muito bem e acabei deixando para lá, pensando que isso custaria muito dinheiro para fazer. Até que um dia vi no programa da Marília Gabriela uma entrevista com o João Nery e fiquei encantado. Não consegui acreditar que aquele homem barbado nasceu mulher. E nesse momento me deu um click. Passei dias e noites pesquisando, quase nem dormia mais”, conta Jackson.
“Tive que ensinar muitos profissionais de saúde sobre transexualidade” – Jackson
O tratamento com testosterona produz mudanças importantes para os homens trans. No canal de Jackson no Youtube, em que ele posta mês a mês sua transformação, é possível notar a voz mais grossa já no primeiro mês, um aumento progressivo de barba, além de mudanças no formato do rosto. Atualmente, mais de um ano depois do início do tratamento, todos que o veem pela primeira vez enxergam um homem: “eu tive uma dificuldade imensa em descobrir como me tratar, então queria muito dividir isso e poder mostrar as minhas mudanças. Ser por fora o homem que sempre fui é uma grande conquista“.
Apesar dos avanços, Jackson precisou ter paciência com o SUS. “Passei com o clínico geral e pedi que me encaminhasse para o endocrinologista e um mês depois fui chamado para a consulta. Na cidade em que eu morava, no interior de São Paulo, tive que ensinar muitos profissionais sobre transexualidade, principalmente a psicóloga e o psiquiatra que fizeram o acompanhamento. Isso era um tabu pra eles, e noto que ainda é pra muitos”.
A cirurgia de redesignação sexual também é um serviço oferecido pela rede pública. No entanto, é algo bem mais complicado para os homens trans do que para as mulheres. Para um homem trans ter um pênis, há duas vias. Uma delas é a metoidioplastia, que alia o tratamento hormonal com uma cirurgia. O crescimento do clitóris, que será transformado em pênis, é estimulado pela testosterona, e a operação constrói nele um canal que se liga à uretra.
A outra opção é a neofaloplastia, que implanta um pênis feito da pele e do tecido vascularizado do paciente. As duas opções criam um saco escrotal a partir dos grandes lábios e testículos feitos com silicone. Essa opção permite que o paciente tenha um pênis maior, mas as chances de infecção e cicatrizes são maiores. No Brasil, só é possível procurar por essas cirurgias nos seguintes hospitais: Universidade de São Paulo (USP), Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Além da redesignação do órgão sexual, também são feitos procedimentos como retirada das mamas, cirurgias no rosto para acentuar formas masculinas e intervenções nas cordas vocais.
Militância além da superfície
As conquistas do movimento LGBT não podem ser negadas, mas ainda são necessários avanços para que homens trans estejam mais empoderados. Entrevistei o militante trans Luiz Uchoa, um dos coordenadores regionais do IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades). “A militância é totalmente cisnormativa. Não somos respeitados pela nossa identidade de gênero e constantemente temos que provar a tal masculinidade desejada por eles e pela sociedade. Muitos gays acabam refletindo o pensamento de uma sociedade falocêntrica, ou seja, só identificam alguém como homem, se possuir um pênis. Caso contrário, será sempre uma lésbica masculinizada. Muitos dizem que não fazemos parte desse movimento”.
A parada LGBT, que é mais conhecida como parada gay, passou quase 20 anos sem ter como pauta a causa trans em um dos seus subtemas. Apenas em 2014 isso aconteceu: “só foi feito após muitas reuniões na APOGLBT SP (Associação da parada GLBT de SP). Eles acreditavam que só existia homofobia e não transfobia, porque confundem identidade de gênero com orientação sexual”, diz Luiz.
Muitas mudanças são necessárias para que homens e mulheres trans se livrem dos pequenos e grandes sofrimentos diários. Desburocratizar o processo judicial para que o nome social, em vez do nome de nascimento, esteja em todos os documentos, planejar uma política nacional de saúde para os trans, garantir a empregabilidade e preservar a integridade no sistema prisional são algumas das lutas atuais.
Tendo em vista que os homens trans são também vítimas das imposições do machismo, além do movimento LGBT, o ideal seria que o feminismo também os abarcasse. Devemos ponderar que os homens não são e nem devem ser protagonistas do feminismo, mas ter nascido mulher e ser um homem trans é um processo que não ocorre sem as cicatrizes da opressão de gênero. No entanto, eles padecem com a falta de solidariedade do movimento. De acordo com Luiz, a maioria ddas feministas não os apóia: “algumas encaram o homem trans como um ser que as envergonha, por associarem a opressão com a figura do homem. O movimento dos homens trans não é a favor do machismo ou qualquer forma de opressão. Gostaria de propor às feministas que conhecem mais a causa trans, para termos mais união de forças“.
As Bofinhas
“Eu não sou trans. Por mais masculina que eu seja, eu gosto de ser mulher e não quero ter corpo de homem”, diz Aline Criscolin, uma das integrantes da dupla sertaneja As Bofinhas. Eduarda Maria, sua parceira de dupla e idealizadora do projeto, tem orgulho do título: “me sinto o machinho da relação, mas na hora H rola de tudo, adoro ser uma bofinha”. Elas estouraram ano passado e ficaram conhecidas como a primeira dupla lésbica de sertanejo universitário.
Mesmo que você não curta o estilo, será uma ótima experiência passar no Youtube e ouvir os hits Saindo do Armário (cujo tema é óbvio) e Surra de Língua (sobre violência doméstica e… surra de língua). Claro que em um meio musical conservador, misógino e lesbofóbico, seria impossível que elas fossem 100% aceitas: “teve gente do sertanejo que chegou a me ligar dizendo que nós estávamos denegrindo a imagem da classe, mas no fundo já sabia que isso ia acontecer”, diz Eduarda.
Hey, machão, pare de bater (…)/ Faça como as Bofinhas, elas vão enlouquecer/ A gente bate com a língua e elas gritam de prazer – Trecho da canção Surra de Língua
Ela também contou que a fama trouxe muitas meninas pedindo conselhos à dupla: “quando me perguntam o que fazer, eu recomendo ser maior de idade para se assumir, chamar os pais pra uma conversa séria e não permitir que terceiros se envolvam na sua escolha. Mesmo minha mãe sendo contra, eu fui à luta e logo depois ela aceitou. Meu pai foi mais tranquilo, ele até me parabenizou por gostar de mulher“.
As fãs lésbicas da dupla não fazem cerimônia nos xavecos.”Depois da fama, o assédio aumentou bastante. Eu ainda não me envolvi com nenhuma fã, mas se tiver que acontecer, não vejo nada de mais”, diz Eduarda. Aline é mais reservada: “eu prefiro preservar o lado profissional. Mas se eu gostar muito da pessoa e perceber que quero ficar de fato com ela, eu me envolveria sim”.
A walk on the wild side
A repórter que vos fala decidiu dar um rolê pelo centro de São Paulo vestida como uma bofinha. Sou uma mulher cis e uso roupas de acordo com o que a sociedade acha que devo usar (na verdade mais ou menos, tenho dias mais rebeldes). De qualquer forma, nunca causei grandes estranhamentos.
Vesti uma camisa xadrez verde escuro, uma calça jeans larga e tênis estilo canoa. O mais difícil foi esconder meu cabelo comprido. Usei uma touca de lã cinza estilosa, dessas mais larguinhas, para conseguir fazer um coque sem parecer que eu estava com um calombo na cabeça. Como acessório, mantive só meu piercing no nariz.
Era noite e comecei o passeio pelo Shopping Light, que até onde sei é point de travestis. Quando entrei no banheiro feminino, ele estava vazio, mas ao sair da cabine, havia uma fila de mulheres esperando. Todas me olharam um pouco, mas uma senhora mais velha fixou o olhar bem fundo no meu e pareceu desprezar meu visual.
Do lado de fora, meu namorado, que estava ali para encenar o papel de “homem hétero meio ogro que namora uma bofinha”, me esperava. Nos beijamos e fomos comer na praça de alimentação. Poucas pessoas nos encararam. Quem mais se destacou foi um homem de um grupo de homossexuais que conversava perto da nossa mesa e que ficou nos olhando meio espantado por um tempo.
Embarcamos no metrô em direção à Avenida Paulista. Encostei perto da porta do trem e ficamos em pé durante o trajeto. Não passamos despercebidos pela maioria das pessoas ao redor. Um homem de meia idade que estava sozinho me olhou longamente com um sorriso irônico no rosto. Havia uma freira no vagão, uma das poucas pessoas que não nos encarou.
Já na Avenida Paulista, sentamos na parte da frente do vão livre do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e ficamos trocando beijos. Para minha surpresa, pouca gente que passava ali nos notava. O destaque foi para um casal de mulheres, pois uma delas passou bem indignada e pareceu sair comentando algo com a companheira.
Descemos para a Augusta e era hora de trocar de parceiro. Encontrei uma amiga que ia representar a “mulher com estilo feminino namorando uma mulher masculinizada”, para comparar as reações. Descemos de mãos dadas e paramos em um boteco em frente à Praça Roosevelt. Um homem e uma mulher que pareciam muito bêbados fizeram o que cabe aos bêbados: foram indiscretos quando chegamos, olharam muito e comentaram algo que não entendi. Pedimos bebidas e a mulher bêbada nos abordou: “vocês me pagam um drink”? Não sei se aquilo era uma cantada, mas ela foi embora dizendo que iria para casa dormir sozinha.
Seguimos descendo e passamos pela Rua Avanhandava, mas os engravatados que costumam ficar na porta dos restaurantes chiques foram discretos nos olhares. Me despedi da minha namoradinha e o rolê acabou ali. São Paulo não fez grandes escândalos com meu visual masculinizado. Posso ter esperanças de um mundo melhor, ou devo pensar que bom comportamento das pessoas foi causado pela pressa?